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terça-feira, 16 de junho de 2009

Malinowski: Construções de Si e em Si

Malinowski: Construções de Si e em Si

Katianne de Sousa Almeida

 

 

 

 

“O que os arquivos pessoais podem atestar, o que o desejo de guardar os próprios documentos

pode indicar, será esse anseio de ser, a posteriori, reconhecido por uma identidade digna de

nota.” Renato Janine Ribeiro

 

A reflexão aqui colocada será sobre a autobiografia de Bronislaw Malinowski, obtida em Um diário no sentido estrito do termo, assim como da biografia deste feita por Eunice Ribeiro Durham em Malinowski, Coleção Grandes Cientistas Sociais, além daquelas contidas nos prefácios e introduções ao Diário, feitas por Valetta Malinowska e Raymond Firth.

A escolha da análise da autobiografia e da biografia foi devido ao anseio de se compreender com mais profundidade a construção que Malinowski fez de si em seu diário de campo, em trabalho etnográfico realizado na Nova Guiné, de 1914 a 1918. E também a construção em si de Malinowski por meio de sua obra antropológica. Além disso, a necessidade de abordar a autobiografia e a biografia deveu-se também pelo interesse em compreender uma das perguntas mais célebres feitas após a publicação do diário: Por que nos é tão estranho o Malinowski de Os Argonautas do Pacífico Ocidental (sua obra mais comentada e um marco nos estudos antropológicos) e o Malinowski do Diário?

Inicialmente farei uma explanação das minhas reflexões sobre a obra Um diário no sentido estrito do termo, logo após uma abordagem da biografia feita por Durham e nas considerações finais uma interligação entre as obras.

  1. As várias facetas do diário

O diário de campo de Malinowski relata as duas etapas de seu trabalho etnográfico na Nova Guiné – setembro de 1914 a agosto de 1915 e nas ilhas Trobriand em outubro de 1917 a julho de 1918 – sendo publicado pela primeira vez em 1967. A publicação do diário ocorreu por decisão da esposa, Valetta Malinowska, após a morte deste. Por meio da minha leitura dos prefácios e pelo o que consta em algumas passagens do diário, acredito que Malinowski jamais pensou em publicar suas anotações.

Incompreendido inicialmente, por sua “transparente” antipatia pelos nativos, suas angústias, desejos lascivos e preocupações excessiva com possíveis doenças, o diário foi execrado. Contudo, na segunda edição do diário, em 1989, o mesmo é abordado de outra maneira, sendo considerado um documento que humaniza o antropólogo diante suas crises de adaptação a outra cultura, a outra sociedade.

E o Diário aparece como um documento precioso sobre o que significa ser um antropólogo, alguém que trabalha com material humano, que não simplesmente observa e anota o que vê, mas passa a fazer parte do objeto de seu estudo, influenciando-o e sendo por ele influenciado.  (Lygia Sigaud).

Essa abordagem de Sigaud é uma tentativa de paz entre o fogo cruzado que metralhou a imagem de B. Malinowski na época de publicação do Diário, pois alguns críticos começaram a refazer a imagem deste, ou seja, de um homem renomado e espirituoso para um homem angustiado, antipático e egocêntrico.

Ora, desta perspectiva vemos como a autobiografia de Malinowski serviu para desacralizá-lo.  Bourdieu (1996) já atentava sobre os riscos da sacralização dos indivíduos em obras biográficas, ou seja, este alertava quanto à necessidade de demonstrar que tudo é relacional dentro do campo[1], neste caso o campo discursivo, o campo institucional.

Pensando sobre o campo discursivo, pode-se compreender a não aceitação do Diário, em sua primeira edição, tendo como apoio o pensamento de Foucault (1996), que indica que a sociedade, por meio de suas regras, controlam o discurso, para que este não seja falado de qualquer modo.

Quer se dizer que, quando o Diário fora publicado existia uma imagem já estabelecida de Malinowski, “professor brilhante, crítico impetuoso, simultaneamente compreensivo e intransigente, Malinowski despertou, ao longo de sua carreira, admiração fervorosa e oposição implacável, influindo, de algum modo, em toda uma geração de antropólogos” (Durham, 1986, pp. 07). A imagem de Malinowski foi reelaborada a partir do Diário, assim como a produção antropológica, pois este sendo considerado um dos pais da antropologia tinha marcado a disciplina com métodos e técnicas. Esta reelaboração da imagem de Malinowski assim como de sua obra será tratada mais adiante com o apoio das reflexões de Geertz (2002).

Continuando com a análise do discurso, Foucault (1996) nos coloca que “não se pode dizer tudo, que não se pode falar de qualquer coisa” (pp. 05). Neste caso, ao tratarmos do Diário em comparação com a obra Os Argonautas, é surpreendente o tratamento que Malinowski dá aos Trobriandeses, assim como, suas angústias quanto a desejos sexuais por mulheres, chegando até mesmo a pensar em estupro.

Sentei-me com alguns nativos, incluindo alguns de Louya e Bwadela, e conversei com eles acerca de kayasa[2], sobre a ida para Okayaulo. Mas as informações deles foram vagas, e eles não falavam com concentração, só para “me despistarem”. À tarde conversamos outra vez. Li vorazmente Wheels of Anarchy e senti uma aversão crescente a estes nativos (Malinowski, 1997, pp. 176).

Na manhã de quarta, um forte acesso de sentimento amoroso; telefonei – resposta negativa. Implorei a ela; um encontro no jardinzinho; negativa; nenhuma acusação. Vendo a frieza dela também me recolhi à indiferença. Na noite de ontem ocorreu-me que, se eu a tivesse arrastado até minha casa, seduzido, convencido, implorado – e a violentado, tudo teria ficado bem (Malinowski, 1997, pp. 102).

 

Foucault nos expõe que a sociedade utiliza de regras sociais que estabelecem formas de se controlar o discurso, uma destas formas é a interdição. A interdição pode ser explicada, de forma simples, da seguinte maneira: há tabus, ou seja, existem assuntos que não podem ser ditos por qualquer um, nem para qualquer pessoa ou, até mesmo, nem serem citados. No Diário, o que se colocou na época como algo que deveria ser interditado foi a relação de antipatia de Malinowski pelos nativos. “Depois do almoço levei morim amarelo e falei sobre o baloma[3]. Fiz um pequeno sagali[4], Navavile[5]. Já estava farto de todos aqueles niggers[6] e do meu trabalho” (Malinowski, 1997, pp. 183).

Este discurso por ir contra os parâmetros da sociedade e dos acadêmicos de antropologia levou, num primeiro momento, o Diário a ser marginalizado. Conforme Foucault (1996) essas ações podem ser explicadas pelo fato dos discursos serem produzidos e modelados por sistemas de regras, vigente na sociedade e em cada âmbito do saber. Para os “súditos” de Malinowski o seu discurso “verdadeiro” sobre o comportamento do antropólogo, a relação com os nativos e a abordagem etnográfica estavam “claramente” encontrados em sua obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental.

Conforme Walter Benjamin (1983), o indivíduo reproduz a memória coletiva, e, de acordo com a análise de Raymond Firth do Diário na época, naquela fase de estudo em que Malinowski encontrava-se, ou seja, na produção de seus artigos e obras antropológicas, “a grande tarefa de descrever e analisar as instituições estranhas parecia mais importante do que discorrer sobre nossa percepção a respeito de nossos próprios papéis na situação.” (Malinowski, 1997, pp. 32).

Sobre a diferença da narrativa do Diário e da obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental, quando trazemos as reflexões de Benjamin (1983) sobre a narrativa, entendemos que o sujeito, de certa forma, não está interessado em transmitir o “puro em si” da coisa narrada. A narrativa tem como princípio mergulhar na vida do narrador para em seguida retirar-se dele, são, assim, os filtros do que se quer manter como memória, ou melhor, as coisas que se quer partilhar coletivamente.

Malinowski com sua idéia de observação participante tornou-se uma das figuras centrais de uma nova geração de antropólogos do início do século XX. Em sua obra Os Argonautas ele é incisivo quanto à necessidade de implantação deste método ao se estudar culturas diferentes a do pesquisador, Eunice Durham ao escrever a biografia dele, inicia o texto partindo deste aspecto de contribuição de sua obra: “a obra de Malinowski demonstra enorme riqueza, vivacidade e complexidade da descrição etnográfica” (Durham, 1986, pp. 07). Sendo assim, era este aspecto que Malinowski gostaria de rememorar, como constata seu Diário:

Durante todo aquele dia senti saudades da civilização. Pensei nos amigos de Melbourne. À noite, no bote, pensamento agradavelmente ambicioso: eu certamente serei um eminente estudioso polonês. Essa será minha última aventura etnológica. Depois disso, dedicar-me-ei à sociologia construtiva: metodologia, economia política etc., e na Polônia posso concretizar minhas ambições melhor do que em qualquer outro lugar. Forte contraste entre meus sonhos com uma vida civilizada e minha vida com os selvagens (Malinowski, 1997, pp. 190, grifo meu).

Aqui temos, de acordo com Bourdieu (1996), a relação entre a produção – a obra – de Malinowski e a criação em si, a sua identificação como sujeito – a criação de si. Para Bourdieu não temos exatamente uma contradição entre produção e criação, porque a produção é algo histórico, a construção da vida do autor, ou seja, a sua trajetória implica na produção de sua obra. Usando as ferramentas de análise de Bourdieu, pode-se entender por que Malinowski não deixou entranhar algumas de suas subjetividades, contida no Diário na obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental. Na época, o campo constituído, não permitia tais subjetividades, assim como ele não identificava estas subjetividades como algo relevante e que precisasse ser publicado, na verdade, sua esposa, em prefácio, deixa claro que “um diário não deveria ser publicado”.

 

  1. A trajetória de vida de Malinowski por Eunice Durham

A biografia de Malinowski escrita por Eunice Durham parte da concepção de trajetória, já que ela narra a história de Malinowski em função da sua posição no campo institucional, os momentos de sua vida que tem relação com sua carreira acadêmica.

Nascido em Cracóvia, na Polônia, em 1884, Malinowski dedicou-se, de início, às ciências exatas, à matemática e à física, tendo sido atraído à antropologia por caminhos transversos. Forçado, por motivos de saúde, a abandonar por algum tempo suas pesquisas de física, resolveu dedicar o tempo livre à leitura da grande obra de James Frazer, The golden bough, que o converteu ao estudo fascinante da antropologia. Iniciou-se nessa nova carreira em Leipzig, sob a orientação de Karl Bücher e Willelm Wundt, mas dirigiu-se logo em seguida para a Inglaterra, onde, em 1910, matriculava-se na London School of Economics (Durham, 1986, pp.07).

 

A idéia de trajetória de Bourdieu também foi abordada por Kofes (2001), para ela  o que é importante analisar em biografias ou autobiografias não é o “realmente vivido”, mas tratar a imagem que se oferece das pessoas em questão, a imagem que aquele que fez a biografia quer passar aos que lêem. Se os escritos dizem a verdade ou não, não é isto que importa. O foco de Eunice Durham  foi, então, centrar-se na experiência de Malinowski.

Não houve o interesse por Durham em narrar a vida de Malinowski como um todo coerente e orientado, ou melhor, em uma seqüência cronológica ordenada. Conforme, Bourdieu (1996b) a idéia de história de vida, de forma científica, deve romper com a totalidade da vida do indivíduo, pois o relato coerente e total é uma ilusão biográfica.

Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma seqüência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar. (...) O real é descontínuo, formado de elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito, aleatório (Bourdieu, 1996b, pp. 185).

A imagem que Durham quis passar de Malinowski foi de um pesquisador dedicado e inovador que influenciou os estudos em antropologia. A abordagem de Durham também enfocou que a trajetória de vida de Malinowski sofreu influências quanto ao contexto histórico que vivia, ou seja, sua vida fora influenciada pela guerra e pelo momento de construção do campo antropológico.

De acordo com Bourdieu (1996), o indivíduo deve ser tratado de uma forma relacional, isto é, a sua relação com instituições, por exemplo, com outras referências, com posições ocupadas no campo. Malinowski estava transitando numa rede que o contexto da época compunha, como já havia dito antes, as abordagens científicas não permitiam a subjetivação do indivíduo em sua obra e não havia a discussão sobre a crítica da posição do antropólogo na sociedade em que ele estudava.

Além disso, na autobiografia de Malinowski, Um diário no sentido estrito do termo, mostra alguns momentos em que o narrador demonstra exercer poder sobre os “nativos”, ao tratá-los de modo pejorativo e de ser um pesquisador europeu em um mundo “não-civilizado”.

Pensei na civilização, angustiado. (…) A casa de Malvern agora parece o paraíso sobre a terra. (Malinowski, 1997, pp.181).

Às vezes tento – ou melhor, tenho uma tendência a sentir nele um eco de meu próprio anseio pela civilização, por uma mulher branca (Malinowski, 1997, pp.177).

Havia momentos em que eu tinha a impressão de que o mar é mais bonito quanto o vemos de um ambiente civilizado (Malinowski, 1997, pp. 81).

O nativo meio civilizado encontrado em Samarai é para mim algo a priori repulsivo e desinteressante; não sinto a menor propensão em trabalhar com eles (Malinowski, 1997, pp. 143).

Na biografia de Malinowski por Eunice e na análise das obras do antropólogo, ela coloca  alguns elementos que mostram as relações de poder entre o pesquisador e os pesquisados: “esse tipo de investigação exige, portanto, que se supere a consciência restrita dos agentes (isto é, as categorias do observado) para atingir conexões gerais, construídas pelo investigador (Durham, 1986, pp. 14).

Neste discurso vemos claramente o poder da narração. Foucault em seu pensamento indica que os discursos sempre controlam e demarcam alguma coisa. No caso de Malinowski o discurso demarca o seu lugar como um pesquisador vinculado a uma tradição britânica de se colocar e de ver o outro, logo, suas perspectivas carregam a necessidade de uma legitimidade, de uma verdade sobre o que ele se propôs narrar.

Às vezes, pode-se pensar que esta legitimidade e o discurso da verdade sobre o “estar lá” (criticado por Geertz) quis indicar o que “realmente ocorreu lá”, dada a necessidade da rede acadêmica ao qual vinculava-se Malinowski. A sua posição situa a sua obra e sua autobiografia.

 

  1. Considerações Finais

Como nos adverte Rosenthal (1996) a disputa de prioridades entre texto, neste caso a obra de Malinowski, e a vida existe desde o princípio das pesquisas biográficas. A trajetória de vida[7], como nos coloca Bourdieu e Rosenthal, é um processo e se transforma no decurso da vida, ou seja, não há como atomizar o indivíduo, pois ele vive e se expressa, ou melhor, narra de forma relacional[8].

Continuando seguindo o pensamento de Rosenthal, a ordem de uma trajetória de vida é ocasionada pela “vida de experiência do mundo”, ou seja, a experiência de Malinowski em campo era bastante diversa da sua experiência em gabinete, na Austrália, quando escreveu os Argonautas, além disso, depois de deixar as ilhas Trobriand Malinowski se casou, portanto, ao escrever sua obra não tinha tantas angústias sexuais e de saúde que o atormentavam na maioria das passagens do Diário.

Rosenthal atenta-se ao fato imperioso da proibição de uma separação entre o contexto e a narração da vida. Logo, a narrativa tanto da autobiografia e da biografia de Malinowski não pode ser dividida e pensada separadamente, porque essas duas escritas são os resultados das experiências que o narrador vivenciou, cada uma, conforme já foi citado, contendo suas particularidades e afetando de forma distinta Malinowski. Sendo assim, quando identificamos essa integração compreendemos melhor o que nos coloca Valetta Malinowska:

Quando existe, portanto, o diário ou a autobiografia de uma personalidade marcante, acredito que esses “dados” relativos à sua vida cotidiana e interior e seus pensamentos devem ser publicados, com o propósito deliberado de revelar essa personalidade e vincular esse conhecimento à obra por ele realizada (Malinowski, 1997, pp. 13).

E também Raymond Firth, no segundo prefácio ao Diário:

Portanto, nesta segunda introdução ao Diário, eu modificaria uma opinião dada na primeira introdução. Embora o livro sem dúvida deixe a desejar “no seu sentido puramente etnográfico” eu não o classificaria mais como “nada mais do que uma nota de rodapé da história da antropologia”. O conceito de etnografia se alterou e se ampliou, e o livro, conseqüentemente, passou a ocupar um lugar mais central numa literatura de reflexão a respeito da antropologia. Não se trata meramente de um registro do pensamento e de sentimento de uma personalidade brilhante e turbulenta que ajudou a constituir a antropologia social; também é uma contribuição altamente significativa para a compreensão da posição e do papel de um pesquisador de campo como participante consciente numa situação social dinâmica (Malinowski, 1997, pp. 35).

Já para Geertz (2002) a sua investigação sobre a questão biográfica no Diário e em Os Argonautas, centra-se na dicotomia expressa na obra e na autobiografia. Para ele a crítica que deve ser feita está na desconstrução do texto etnográfico, assim como outros autores (Crapanzano, Rosenthal, Bourdieu, Okely) fazem a desconstrução das biografias. Geertz quis explanar que o estado lá, não significa trazer a totalidade deste “”, resumindo, para este há um apelo moral quanto a “nativização de si mesmo”.

Quanto as críticas dos outros autores referente a desconstrução das biografias, ao se realizar um diálogo em busca de uma biografia do outro, inicialmente pode-se ressaltar o que nos coloca Crapanzano (1991), que a maioria das pessoas falam em diálogo na antropologia, mas poucas refletem e praticam essa relação dialógica. E para Rosenthal a realidade é mais rica do que podemos apreender, sendo assim, uma biografia ou autobiografia não é a pessoa biografada, até mesmo em autobiografias, não temos a totalidade da pessoa que narra, pois esta faz escolhas conforme o campo discursivo e outros campos.

Retomando a análise de Geertz, ele ao vincular a obra – os Argonautas ao Diário pôde-se refletir sobre o caráter persuasivo das etnografias, isto é, o convencimento de que os textos são formas de demonstrar que os etnógrafos terem “estado lá”, “penetrado” numa outra forma de vida e não pelo fato de terem, “apenas”, uma experiência de campo.

No final das contas, estes autores querem dizer que as escritas de si assim como a escrita em si são construções. Mauss (2003) ao falar de pessoa já indicava que nada era natural, logo, tudo era construído socialmente. Até mesmo a idéia de pessoa, a idéia do “Eu”. Se a idéia de pessoa pode ser flutuante, delicada, preciosa e passível de maior elaboração, as construções de si em biografias e autobiografias também são remodeladas, a noção e o conceito de si têm influência com a forma que o indivíduo se relaciona com a religião, com seus costumes, com a estrutura social, com a mentalidade social, com seus direitos, com sua cultura, etc.

 

Para ajudar nesta análise da biografia junto com a autobiografia Alberti (1991) afirma que o indivíduo não tem uma posição linear, pois “o escritor no processo de produção da narrativa, se move continuamente entre o que ‘é’ e o ‘que poderia ser’” (pp. 66). E essa ambigüidade entre identidade e criação são produções de imagens de um sujeito que se metamorfoseia, o autor desloca-se nas pluralidades da narração, desmistificando a noção de unidade, ao que o eu “proclama-se como único”.  “O narrador de uma história é sempre uma invenção” (pp. 81).

Pensamentos: Escrever o diário retrospectivo sugere muitas reflexões: um diário é uma ‘história’ de eventos inteiramente acessíveis ao observador, e, mesmo assim, escrever um diário exige um conhecimento profundo e um treinamento meticuloso; mudança do ponto de vista teórico; a experiência em escrever leva a resultados inteiramente diferentes mesmo que o observador permaneça o mesmo – quanto mais se houver observadores diferentes! Conseqüentemente não podemos falar dos fatos objetivamente existentes: a teoria cria os fatos. Conseqüentemente, a ‘história’ não existe como ciência independente. A história é a observação dos fatos à medida que o tempo dá origem a elas. – A vida que deixei para trás é opalescente, um brilho de muitas cores. Algumas coisas me surpreendem e me atraem. Outras já morreram. (…) Ambições, a necessidade de estar em atividade e de dar uma expressão mais precisa às minhas idéias (Malinowski, 1997, pp. 145).

 

  1. Referências Bibliográficas

 

ALBERTI, Verena. Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na narrativa. Estudos Históricos, v. 4 nº 7, p. 66-81, 1991.

 

BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov e sobre o conceito de história. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

 

BOURDIEU, Pierre. Por uma ciência das obras. IN: Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.

 

__________________. A ilusão biográfica. IN: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaina. Usos e abusos da história oral. Edt. Fundação Getúlio Vargas, 1996b.

 

 

CRAPANZANO, Vicent. Diálogo. Anuário Antropológico/88. Brasília: Editora UNB, 1991.

 

DURHAM, Eunice. Introdução. Malinowski. São Paulo: Ática, 1986

 

FOUCAUT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

 

GEERTZ, Clifford. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: editora UFRJ, 2002.

 

KOFES, Suely. Uma trajetória, em narrativas. Campinas: Mercado das Letras, 2001.

 

MALINOWSKI, Bronislaw. Um diário no sentido estrito do termo. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1997.

 

MAUSS, Marcel. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de “eu”. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

 

OKELY, Judith. Anthropology and autobiography: participatory experience and embodied knowledge. In: Judith Okely, helen Callaway (edit.) Anthropology and autobiography. London and New York: Routledge, 1995.

 

ROSENTHAL, Gabriele. A estrutura e a gestalt das autobiografias e suas conseqüências metodológicas. IN: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaina. Usos e abusos da história oral. Edt. Fundação Getúlio Vargas, 1996.

 

 

 

 

 

 

 

 



[1]  A noção de campo representa para Bourdieu um espaço social de dominação e de conflitos. Cada campo tem certa autonomia e possui suas próprias regras de organização e de hierarquia social. Como num jogo de xadrez, o indivíduo age ou joga segundo sua posição social neste espaço delimitado.

[2] Kayasa: divertimentos, inclusive danças competitivas obrigatórias e diversões das quais as mulheres participam, fora da época das danças, também empreitada contratual.

[3] Baloma: o espírito ou alma de um homem que deixa o corpo após a morte.

[4] Sagali: distribuição cerimonial de alimentos.

[5] Vavavile: um importante informante de Oburaku.

[6]  O Webser’s New International Dictionary, segunda edição, tem como uma segunda acepção do termo: “usado de modo impróprio ou informal, pessoa de qualquer raça de pele escura, como um nativo das Índias Orientais, das Filipinas, do Egito.” Era um termo coloquial comumente empregado pelos europeus, na época em que Malinowski estava escrevendo, para designar os povos nativos, muitos dos quais, como os melanésios, naturalmente não eram negros.

[7] Como eu utilizo o conceito de trajetória de vida de Bourdieu, substitui o termo história de vida. Na verdade, em seu texto, Rosenthal utiliza a nomenclatura história de vida, mas como ela não utiliza essa categoria de forma linear, enfocando também na questão relacional e não atomiza, isto é, essencializa o indivíduo biografado, pude fazer uma aproximação entre estes autores.

[8] Vide a citação na página 10 em que o próprio Malinowski demonstra que suas idéias são relacionais.

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