Pesquisar este blog

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Devaneios de Tetê

Pra Rir!


Este texto escrevi pra rir, na verdade o ”concebi rindo de mim mesma” em momento de “no stress” , enquanto ria a valer. Pensava na minha “desimportância” (existe essa palavra? Se não, acabo de inventá-la rsrsrs...), e nas “circunstâncias que me inspiravam”. Hum! Jamais imaginei que pudesse ser tão “circunspecta”!!!
Na verdade sentei-me à tela depois de dez horas de leitura, meio “atordoada” com tantas letras. Não o planejei, ele fluiu nos acordes das minhas carícias nas teclas. Afinal, quando não estou leeeendo esquizofrenicamente, escrevo achando que com isto minha mente terá um pouco de descanso. Ledo engano! Que descanso que nada! Experimento um caos mental cotidianamente, sem conseguir livrar-me dele rsrsrs!!!!


Acordo com uma angústia não sei do que. Olho para o relógio são seis e trinta da matina. Que faço eu acordada essa hora em “plenas férias?” Ah, sim porque a UFG (vide mestrado de antropologia social) nos deu “férias” de um mês em julho com ”apenas” os três trabalhos finais para realizar, e também refletir sobre o projeto, procurar os orientadores, e fazer algumas leituras, estas já sobre o tema da dissertação. Tudo muito light, muito zen, sem motivos para angústia, ou desespero, afinal o dia tem 48 horas, teremos um mês inteiro, e estamos reclamando de que????
Lembrei agora porque essa sensação inquietante. Hoje é o dia em que começarei a fazer o trabalho de Teorias Antropológicas, depois de debater-me por dias sucessivos para fazer o trabalho de Gênero e Sexualidade. Acordava, comia, tomava banho, dormia e tinha pesadelos com este trabalho. Escrevi e reescrevi seiscentas vezes, imprimi (gastei muuuito papel e tinta) outras tantas, não me dava por satisfeita de ler o que estava na tela, afinal poderia haver incoerências “não detectáveis” se não estivesse lendo, e corrigindo no papel! Esquisitices de gente que só se satisfaz manuseando e sentindo o cheiro do papel, percorre bibliotecas, museus e sebos para relaxar, ama moda retrô, e que de repente vê-se às voltas com “esse tal computador não confiável”, segundo as idéias, mais esquizofrênicas e retrógradas possíveis no que se refere à tecnologia!
Voltemos ao trabalho de Teorias Antropológicas. Vou dar uma olhadinha básica na minha estante. Quase caio pra trás quando “revejo” “minhas belas e valiosas monografias” enfileiradas à minha frente, e certamente ansiosas para sair da estante e dar uma voltinha. E eu que estava tão aliviada achando que ia dar um descanso aos meus pobres olhos e à minha cachola, dou meia volta e “pernas para que te quero”. Resolvo dar um giro pela casa, assoviando e tentando fingir que, “aquilo tudo” nas prateleiras nada tinha a ver com a minha pessoa.
Vou até a cozinha preparar um lanche reforçado para iniciar o trabalho. Enquanto isso reflito: Connell, Frazer, Morgan, Godelier, Clastres, Ingold, Adam Kuper, Roberto Cardoso de Oliveira, Roberto Da Matta, Geertz (não Tetê que confusão está fazendo, estes últimos foram livros que você comprou e leituras paralelas que fez, nada tem a ver com o trabalho de Teoria, lembre-se são os clássicos, nada de confusões mentais, afinal você não está “nem tendo que assistir aulas, deveria estar mais focada!!!).
Gente! Têm os textos também! Hum! Evolucionismo não estes não, Boas, Stocking Jr acho que não, Mead, Benedict, Bateson lembrei-me da participação destes na segunda guerra e dos textos guerra e caráter nacional, estilos variáveis de trabalhos antropológicos, parece que tem uma idéia interessante aqui, resolvo deixar de molho, digo a idéia, Durkheim, Mauss, Malinowski, Radcliffe-Brown este nem sob tortura não de jeito maneira! Evans-Pritchard, Gluckman nenhuma idéia iluminada até então. E Levi-Strauss? Penso com meus botões por um minuto de insanidade em trabalhar Levi-Strauss, afinal ele é “tão fácil de ser compreendido, têm tantas contribuições bacanas, morou no Brasil, são tantos argumentos a favor”, mas logo retomo meu perfeito juízo, e descarto esta idéia maluca! Eu iria acabar de endoidecer!
Volto correndo para o escritório, meu lanche fica intacto sobre a mesa, pego tooodas as monografias, e descubro de quebra que têm os textos também. Apenas para resolver o que trabalhar terei que reler aqui e ali uma ou outra coisa. Não rio nem choro, suspiro dando adeus mais uma vez às férias, sonhando com as praias paradisíacas do nordeste Jericoacoara, Pipa, Morro de São Paulo, Ilhéus, Maceió, Porto de Galinhas, esperando poder rever minhas queridas companheiras no final do ano!
Pensando assim, renovo meu ânimo e descanso virtualmente, até penso em flanar na Internet, para ver as praias, e poder ter a sensação da areia sob os pés, ouvir as ondas do mar (talvez eu possa colocar o som das ondas enquanto escrevo, ah que inspirador!), poderei até sentir o cheiro da maresia, e pegar um bronzeado por que não? O computador faz maravilhas! Afinal estamos no século XXI. É imprescindível além de ser capaz de usar todo aparato tecnológico, descansar sonhando que o faz!

Tetê
Mestranda - Antropologia Social - UfG

terça-feira, 24 de novembro de 2009

A descolonização que não passa

A descolonização que não passa

Prof. Dr. Armando Gnisci

Universidade de Roma "La Sapienza"
A filósofa Iris Marion Young, de Chicago, Illinois, em um manifesto de 7 de agosto, crucificou os grandes filósofos europeus: Derrida, Vattimo, Eco e Savater, dentre outros, que, no dia 31 de maio último, guiados por J. Habermas, fizeram um apelo, nos jornais de maior circulação, aos cidadãos de nosso continente, exortando-os a elaborar uma identidade política comum a fim de resistir à hegemonia dos cowboys ( não tomei a imagem por empréstimo de Young, nem mesmo de Habermas, mas do poeta Josif Brodskij), e a fazê-lo em nome de uma nascente “esfera pública européia” aberta à idéia de uma democracia cosmopolita renovada, que, segundo os nossos filósofos, teria de fazer referência ao glorioso passado de nossa civilização – cristianismo, liberdade individual e direitos humanos, capitalismo e welfare, ciência, filosofia – e, depois, aos órgãos de poder atuais: G8, WTO, FMI e Banco Mundial. Que pensamento penoso (demasiado forte para os fracos)!

Young tem todas as razões para atacar a filosofia vigente na Europa, e fá-lo à exaustão, em nome das idéias do Fórum Social Mundial de Porto Alegre e da “busca de igualdade” que apenas o mundialismo verdadeiro pode gerar: aquele que sopra do sul do planeta e do futuro. Bem dito. Eu subscrevo a reflexão de Young e a relanço para os europeus.

O que propõe a filósofa yankee? Em síntese, ela afirma que o discurso de Habermas e Cia parece querer propor um perigoso “recentramento” da Europa e que, ao contrário, o projeto progressivo deveria consistir, de acordo com as palavras de Dipesh Chakabarty, em provincializar a Europa. Bem, vejamos o que ela entende por “recentramento”. Ela afirma que a nova consciência européia significa re- estabelecer o centro e o norte ( “na garupa”, a imagem é minha) do mundo, junto com os EUA. E o que ela entende por “provincializar”? Reduzir o centro do mundo a um vazio, com todos os povos em torno, como províncias iguais do humano. Pois bem.

Sustenho e pratico, não sozinho, essa poética há muitos anos, como literato europeu. Eu a denominei “colóquio” (do Latim pluralista, ao invés do Grego platônico e do jesuítico “diálogo”). E também há muitos anos atrás, os curadores do volume de estudos em honra do comparatista da universidade de Aquisgrana (Aachen, perto Maastricht) Hugo Dyserinck, que abandonava o ensino, reuniu os nossos escritos sob o título, absolutamente discreto e moderado, ao menos para nós comparatistas, Europa província mundi.

Pausa: não sei se já dei sinais da minha alteração. Sim, começo a alterar-me. Vejamos porquê. Aprendi muito com os humanistas americanos. bell hooks (1) e Gloria Anzaldúa são verdadeiras musas e líderes que me permitiram pensar e praticar melhor a minha vida/trabalho, mas a filosofia de Young me parece um pouco catedrática, muito embora se apresente do ponto de vista Novo Global de um modo justo.
Que Habermas e Cia os desagradem, não é motivo para abalo. Mas que isso (o gesto de inverter o argumento dos filósofos europeus com um pouco de pensamento pós-colonial) signifique também chegar a “impor” o que nós humanistas europeus devemos fazer, efetivamente me incomoda.

Chegamos, então, ao ponto. Nós, europeus, adoramos Clio, a deusa da história. Derek Walcott, o poeta das Caraíbas, demonstrou isso com clareza. E Clio, como o anjo de Walter Benjamim, olha para trás: obtorto collo (ainda uma pílula fácil de Latim; Brodskij adorava brincar com essa mania). Para Benjamim, o anjo retrovisor vê escombros; para os nossos filósofos em serviço, ao contrário, ele vê a glória magnífica, progressiva e extensa da identidade/ civilização da Europa: cristianismo, liberalismo etc.

Afirmo que o que cabe a nós, europeus, ao invés disso, encontrar (retirar do esconderijo opaco do removido-ausente) o negativo retroativo da nossa história e praticar a crítica do remorso, como ensinou De Martino. Do que falo? Do que nos meus escritos —tomei por empréstimo esse hábito precioso e tolo de um outro filósofo, o euro-parmenídeo Emanuele Severino – tenho chamado de “descolonização européia feita por nós mesmos, não solitária, mas fruto do aprendizado com os outros”. Falo pelo primeiro Sartre – rappellez-vous? – quando apresenta o livro de Franz Fanon, Os condenados da terra.
Só após essa crítica cirúrgica “esfolante” (Sartre), se pode iniciar a criação de uma nova identidade européia pública, que nos possa permitir sermos aceitos no colloquium generale das diferenças dos mundos. Essa é a direção do nosso “provincializarmo-nos”. Difícil, improvável, clandestina, mas simplesmente pronunciada e praticada. Gramsci ( que agrada a Stuart Hall e a James Clifford) nos ensinou a voltarmos a guardar as coisas como são agora.

Como vê, gentil filósofa de Illinois, assim como diziam os antigos da África e da Europa, nunca cessa de chegar aliquid novi.

Além disso, afirmo que nós europeus necessitamos mesmo de nos “recentrarmos”. Tudo bem que, não no fluxo da banalidade de Habermas e Cia (e os mais estereotipados, parecem-me ser os italianos Eco e Vattimo, no fim de maio), mas em busca das nossas diferenças reais e do nosso projeto e futuro junto a todos os outros.

Recentrarmo-nos não ao centro do mundo, mas sobre fatos nossos: navegando implacáveis no abismo opaco da destituição que fizemos da nossa sede de poder, para remordê-la e saná-la. Só assim, conforme disse, poderemos ser admitidos no W1000: a busca do colóquio planetário das multidões ( Toni Negri) da espécie. O colonialismo foi e é a nossa doença, conforme nos ensinaram Aimé Césaire, Frantz Fanon e Édouard Glissant, o tunisiano Albert Memmi, o afro-britânico Paul Gilroy, a caraíba (do lugarejo da ilha de Antigua) Jamaica Kincaide, Toni Morrison e Nadine Gordimer, a branca negra, o queniano Ngugi wa Thiong’o e o indiano Amitav Ghosh, Simone Weil e os tropicalistas brasileiros, de Gilberto Freire a Caetano Veloso (nenhum deles filósofo de profissão) e tantos outros, há tantos anos. E também os “migrantes” que acorrem à Europa vindos de toda parte do mundo. Formam todos juntos uma esteira subterrânea e paralela à grande filosofia européia, de Hegel (para o qual os africanos eram sub-humanos sem história) a Habermas.

Para terminar, Senhora Young, nós em Ausonia estamos muito mal. Somos governados por um tirano, ex-cantor de ferry boat, um sátrapa atarracado e impune, palafreneiro no rancho texano do imperador Bush. E os filósofos progressistas que temos em serviço são apenas pessoas inteligentes e bem-sucedidas. Assim, torna-se sempre muito difícil “descolonizarmo-nos”. Há resistência. E como a senhora vê os EUA, se é verdade que Arnold Schwarzenegger está destinado a percorrer o caminho de Reagan? Como estão se organizando para “provincializarem-se”? As fadas sempre correram sobre Derrida, ou agora usam incenso indiano: Homi Bhabha, Gayatri Chakravoty Spivak e Dipesh Chakabarty? E o que me diz da rebelião estudantil universitária contra a guerra no Iraque?

Seja como for, boa sorte!
Nota
bell hooks adotou a grafia de seu nome em minúsculas e, em respeito às convicções que a levaram a fazê-lo, eu a mantenho neste texto.

* Tradução de Shirley de S. G. Carreira

VOLUME II, NÚMERO VI - Jul-Set 2003

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

CUIDADO ENTREGA DE PROJETO À VISTA


OI GENTE, O PROJETO ESTÁ AÍ PARA SER ENTREGUE...

UM MÊS DE PRAZO...

E AÍ TODO MUNDO NO SUFOCO?

Então aqui vai as dicas do professor Gabriel
Acredito que possa ajudar um pouco
Beijos da Kati
Projetos
O projeto é um estilo específico. Tem que ser propositivo, escrito em tempo verbal potencial. Eu faria. Todo projeto tem que dar conta das cinco questões básicas: o que, como, quem, onde e quando. O que é de soma importância, é a construção do problema, o como a metodologia e o quem, onde e quando se referem ao grupo, local de pesquisa período de trabalho de campo e trabalho de gabinete. Se o problema teórico está bem construído, ele resistirá a uma mudança do grupo ou de local de pesquisa. Estas cinco questões básicas, envolvem, cada uma delas, literaturas específicas. O primeiro passo para a construção de um projeto e a pesquisa bibliográfica. Fazer uma pesquisa de autores que podem ser potencialmente utilizados. Com essas referências bibliográficas em mão, o segundo passo é a sistematização da bibliografia. Agrupas esses diversos autores e escrever parágrafos densos, carregados de referências bibliográficas. Projeto não é local para citação textual. O autor é você e tem que expressar com suas palavras uma síntese do pensamento dos autores, relacioná-los, citá-los como símbolos onde a menção da obra supõe o conhecimento dos conceitos desenvolvidos pelo autor. Agora você é o autor e o problema teórico se constrói em diálogo com outros autores.Nota de roda-pé. “Se é importante tem que estar no texto, se não é importante, não deve estar”.O primeiro parágrafo é fundamental. Ele tem que apresentar, de forma sintética, as questões desenvolvidas no texto. É o último a ser escrito, porque supõe o conhecimento do percurso analítico desenvolvido no texto. Por outro lado, lembre, seu texto cairá nas mãos de um avaliador, um leitor cansado, que tem uma pilha de projetos para ler. Você deve cativar o leitor, fisgar sua atenção, fazer com que ele se interesse e se lembre do seu projeto.Os projetos não costumam ser publicados, muitas vezes porque os resultados costumam ser diferentes que os dados previstos inicialmente, antes de realizar o trabalho de campo. A modo de referência disponibilizo para os alunos um par de projetos realizados. Um deles, sintético, foi o guia da pesquisa com os Sateré-Mawé, o outro foi inicialmente pensado para ser executado na fronteira norte, mas terminou servindo de guia para uma pesquisa na fronteira sul. Quando o problema teórico está bem amarrado, pode mudar o local de pesquisa, o grupo, mas a questão teórico permanece em pé.

Um blog interessante

Oi gente, conversando hoje com o professor Gabriel ele enviou-me um endereço de blog, acredito que foi ele quem fez....
Legal dar uma olhada...
Muita coisa interessante
Beijos!


http://metodoetnografico.blogspot.com/

terça-feira, 11 de agosto de 2009

MUSEUS E VERDADE: VERSÕES DA AUTORIDADE ETNOGRÁFICA


MUSEUS E VERDADE: VERSÕES DA AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

Katianne de Sousa Almeida



Resumo

A memória é mais do que parte integrante da existência humana, ela é, na verdade, sua condição de existência. E, como elemento essencial do sujeito, muitos sentem a necessidade de guardá-la em locais seguros, como relíquias. Estes locais seguros denominam-se museus. Para Walter Benjamin, os museus são como lugares de sonhos, um espaço de identificação do imaginário coletivo em que este locus procura nos resquícios do passado uma impregnação nostálgica e libertadora. Contudo, sabe-se que pela biografia da formação dos museus suas funções não são tão esplêndidas assim. Para além da divinização do passado, os museus foram espaços da abordagem evolucionista da diversidade humana assim como um mecanismo de controle do discurso sobre a cultura dos povos, ou seja, uma instituição legitimadora e ordenadora. Para que um objeto entrasse no museu significava pertencer a um tipo de memória que se queria preservar e servir como referência. Sendo assim, quais as memórias e narrativas foram e ainda são preservadas? Este artigo é uma tentativa de abordar o arquivo como um lugar de questionamento sobre a experiência antropológica, assim como a reflexividade da escrita, o poder dos processos narrativos e a constituição dos sujeitos por suas memórias.

Palavras-Chave: Museus, memória, arquivo

Os museus fazem parte, do modo mais límpido, das casas de sonho do coletivo.
Walter Benjamin

O arquivo em questão

Museu, do latim museum que veio do grego mouseíon, ou seja, templo da morada das musas. Musa, por sua vez, significa qualquer divindade que inspire as artes. Pode-se fazer, então, uma ligação entre museus e o templo das divindades, logo, vinculado ao sagrado e, assim, conseqüentemente ao que está vinculado à pureza, à veneração, ao respeito de maneira profunda, enfim, àquilo que é constituído como verdade.

Essa verdade seria assegurada pelo fato dos museus constituírem-se como instituições “autorizadas” a salvaguardar o concreto, o que é real, isto é, a materialidade dos povos. Essa materialidade teve como precursora os gabinetes de curiosidades, estes eram espaços que atraíam o público pelas coleções de artefatos de populações do “novo mundo” consideradas pelos europeus como exóticas e peculiares.

Os gabinetes de curiosidades eram locus do espírito colecionista de viajantes, missionários e naturalistas que a partir do século XV tinham o desejo ambicioso de acumular artefatos da mesma natureza, ou que tinham quaisquer relações entre si. Os objetos colecionados surgiam por diversas razões, tais como identitárias, sentimentais, econômicas, práticas de pesquisa e, no geral, eram vistos como relíquias.

Efetivamente, desde o século XVI, os cronistas europeus vêm registrando os desenhos utilizados pelos povos autóctones na própria pintura corporal e em diferentes tipos de suporte, como na decoração de cerâmicas, nos tecidos, nas máscaras, nas cestarias, nas esculturas em madeira, e em uma série de artefatos e ornamentos. Muitas dessas peças foram coletadas de forma aleatória. A partir da segunda metade do século XVIII, viajantes e naturalistas percorreram o continente americano pesquisando e coletando, de forma mais sistemática, os objetos fabricados pelos povos autóctones, remetendo-os às instituições européias, em sua maioria os museus.

Entretanto, foi somente no século XIX, momento que a antropologia consolidou-se como disciplina, que os objetos contidos nos museus começaram a ser problematizados. A antropologia passou a realizar um trabalho de classificação dos objetos resguardados a partir de aspectos como o meio ambiente, a técnica e a forma.

Pode-se, então, perceber que, no início, o uso dos museus foi como lugar de pesquisa descritiva, em que se procurava ordenar os objetos em áreas geográficas ou culturais, mas se negligenciava a investigação sobre a dimensão social e simbólica dos objetos. Poderíamos pensar que o próximo passo seria a investigação da dimensão social e simbólica, mas com o tempo a antropologia perdeu o interesse por esses materiais contidos nos museus, e conseqüentemente a própria problematização desta instituição.

Somente após a percepção de que a cultura material traz uma riqueza de informações, sobre aspectos da vida social e sobre o simbolismo daqueles que a produziam, é que os objetos resguardados em museus readquiriram importância para a antropologia. Contudo, ainda para Canclini (1997) atualmente não nos desvencilhamos do colecionismo raso inicial. Isso se dá pelo fato de alguns estudiosos acreditarem que o importante é agregar mais materiais ao acervo, fomentando um empirismo raso na catalogação dos materiais e uma pobre interpretação contextual dos fenômenos.

Então, não há, efetivamente, uma preocupação de situar os materiais preservados dentro de uma lógica das relações sociais; eles ainda, infelizmente, permanecem identificados ao passado “rústico”, “arcaico” e “exótico”. Não há uma vontade expressiva de incluir nos materiais uma referência às práticas cotidianas para qual foram feitos; nos museus quase nunca se expõe o porquê dos materiais serem importantes e em que processos sociais estão envolvidos os materiais.

Este é o desafio dos museus: ou eles são espaços de relação que operam a favor da humanidade e da vida, ou arcas de acumulação de bugigangas que se cristalizam nos sobejos de morte (Chagas, 1992, pp. 301).

Dentro desta proposta de problematizar o museu, ou melhor, os arquivos Clifford (1988) apresenta algumas preocupações quanto a falta de contextualização científica coerente que encorajaria a errônea apreciação dos acervos museológicos como obras de arte isoladas, ao invés de artefatos culturais.

Mesmo no trabalho posterior de Griaule e seus colaboradores, que vai além do colecionamento museológico que dominou os primeiros tempos da missão, há pouco esforço no sentido de apresentar uma versão unificada de uma realidade africana livre dos intervalos e descontinuidades de uma apresentação documentária e exegética (Clifford, 1988, pp. 157-158).

Sendo assim, voltamos à questão inicial de pensar o museu como arquivo e como locus de experiências etnográficas. Os museus foram e ainda são instituições “autorizadas” a salvaguardar a materialidade e a memória dos povos. Portanto, os museus podem ser considerados elementos socializadores da memória. Todavia, coloca-se o seguinte questionamento: qual memória é guardada, ou melhor, preservada? De qual memória estamos falando?

Memórias a preservar

Para que museu? Toda a aprendizagem dos índios sobre museu,

realizada com as experiências aqui descritas,

pode ser condensada nessa sábia resposta:

‘Para não esquecer’

José Ribamar Bessa Freire

Memória... Uma interessante categoria que está ligada à faculdade de reter e recordar impressões e conhecimentos adquiridos anteriormente. Contudo, sabe-se que não são todos os conhecimentos, experiência e vivências que conseguem a garantia de não serem esquecidas. Assim como Mauss (2003) concebeu a idéia que a categoria “pessoa”/ “eu” é uma construção social, a memória também é uma construção social e também é um instrumento para visualizar as maneiras diversificadas em que se constituem as lembranças dos seres humanos.

As memórias, em maior ou menor grau de importância, podem abordar aspectos da cultura popular, da vida em família, dos hábitos e costumes de uma localidade, da religiosidade, entre outras. Talvez, se possa até considerar a memória como um fenômeno social total, pois para compreendê-la é preciso buscar em um conjunto de sistemas seja presente na ordem do religioso, ou do jurídico, ou do econômico, ou da tradição, ou do costume, etc. Assim sendo, a memória é uma categoria complexa, pluridimensional. Além disso, ela somente é compreensível dentro da totalidade, conforme as estruturas simbólicas e concretas do grupo.

(...) O princípio e o fim da sociologia é perceber o grupo inteiro e seu comportamento inteiro. (...) Os fatos que estudamos são todos, permitam-nos a expressão, fatos sociais totais, isto é, eles põem em ação, em certos casos, a totalidade da sociedade e de suas instituições. (...) Todos esses fenômenos são ao mesmo tempo jurídicos, econômicos, religiosos, e mesmo estéticos e morfológicos etc. (Mauss, 2003, pp. 309 e 312).

Tendo como arcabouço conceitual o que foi descrito acima - a memória assim como constatou Maurice Halbwachs (2004) constitui-se sob as bases do imaginário do grupo, posto que todas as lembranças são construídas no interior de um grupo. A origem de várias idéias, reflexões, sentimentos, paixões do indivíduo são, na verdade, inspiradas pelo grupo.

No entanto, ainda existem dúvidas para além da formação da memória, como, por exemplo, o que elas podem transmitir? Bem, Halbwachs afirma que as recordações, a partir da vivência em grupo, podem refletir idéias reconstruídas ou simuladas e é neste ponto que trazemos de volta os usos e abusos da instituição – museu.

Ora, dissemos anteriormente que os museus são espaços que preservam a memória dos povos e que também desempenham o papel educativo de informar sobre “as verdades”, ou o concreto de determinadas culturas mortas e também vivas. Mas se as memórias, assim como alertou Halbwachs, podem ser simuladas o que esperar das descrições museológicas?

Sabe-se que todo o processo de construção da memória passa por um referencial que é o sujeito e este sujeito de forma alguma está preso em um pedestal ou dentro de um vácuo que não sofre qualquer influência externa.

Trata-se de nada menos que de vos explicar como uma das categorias do espírito humano – uma dessas idéias que acreditamos inatas – lentamente surgiu e cresceu ao longo dos séculos e através de numerosas vicissitudes, de tal modo que ela ainda é, mesmo hoje, flutuante, delicada, preciosa, e passível de maior elaboração. É a idéia de “pessoa”, a idéia do “Eu” (Mauss,2003, pp. 369).

Mauss (2003), ao falar de pessoa já indicava que nada era natural, logo, tudo era construído socialmente. Até mesmo a idéia de pessoa, a idéia do “Eu”. Se a idéia de pessoa pode ser flutuante, delicada, preciosa e passível de maior elaboração, as construções de si, por meio das memórias arquivadas também são remodeladas. A noção e o conceito de si têm influência com a forma que o indivíduo se relaciona com a religião, com seus costumes, com a estrutura social, com a mentalidade social, com seus direitos, com sua cultura, etc.

O conjunto de nossas atitudes é resultante de uma construção social, ou seja, o social opera no âmbito mais íntimo do indivíduo, o locus concreto do ser: o seu corpo. E este corpo que tem o seu imaginário convive com as dinâmicas fluidas do contexto social, logo capaz de formular diversas memórias de si e, conseqüentemente, de seu grupo.

Para Júnior e Silva (2005), os museus em qualquer contexto serão lugares em que os objetos permaneceram guardando a memória das relações que constituíram os grupos e continuaram sendo objetos de valor. E é por essa razão que os objetos de museu sempre serão polissemânticos, sendo os seus significados continuamente reelaborados tanto por aqueles que pesquisam estas memórias como para aqueles a que pertencem estas memórias.

Com isso, quem sabe, ao invés das costumeiras acusações e denúncias contra os museus, possamos fazer deles, não o local da “tristeza” e da pilhagem, ou até mesmo do colonialismo, mas, pelo contrário, como um local onde sejamos amigos de objetos interpretáveis, congregando num mesmo espaço-tempo “os objetos”, “os outros” e “nós”. Assim, quem sabe, estaremos fazendo verdadeiramente um museu de grandes novidades (idem, 2005, pp. 106).

AUTORIDADE ROMPIDA

A realidade é mais rica do que podemos apreender

Rosenthal.

Terminar dizendo que os museus sempre carregarão o carma do colonialismo é deixar de problematizar este arquivo que tem tanto a dizer da diversidade humana quanto da história da antropologia e seus arcabouços metodológicos.

Os museus são locus interessantes de se ver os caminhos trilhados pela ciência antropológica em suas abordagens sobre a alteridade, sobre a diversidade, sobre a complexidade humana. Ora, no início os museus eram espaços considerados gabinetes de curiosidades, em que o que era o exótico ou característico de uma aproximação ao homem primevo era o que identificava um arquivo museológico, junta-se estas idéias os pressupostos evolucionistas que marcaram o início do paradigma da ciência antropológica.

Depois com a ânsia pelo trabalho de campo os museus foram deixados de lado e somente com Lévi-Strauss acreditou-se que os museus seriam como prolongamentos do trabalho de campo. Abriu-se a mente para a importância do patrimônio material, encarando que é também por meio destes objetos musealizados que muitos elementos portadores de valores culturais podem ser revelados. As artes dos povos autóctones, exemplo de arquivo museológico, são documentos tanto quanto os textos etnográficos, cadernos de campo, filmes documentários e fotografias, através dos quais é possível pensar usos e significados em uma cultura particular.

Com a atual desmistificação do que pode ser experiência etnográfica, ou seja, afastando-se da prisão descrita por Malinowski, os museus são alvos de importantes contextualizações e aproximações, com a crítica devida ao seu papel dentro da pesquisa documental.

Conforme Sant’anna (2003), essa crítica estava em considerar que ao se retirar um objeto do seu contexto social de uso e produção, declará-lo patrimônio, ou memória preservada, conservá-lo como uma relíquia e disponibilizá-lo em museus não abrange todas as situações em que é possível reconhecer um valor cultural. Foi, então, somente pelo viés da contextualização e aproximação entre as culturas resguardadas e aquelas que resguardam, ou seja, a promoção do diálogo intercultural que se consegue a “revalorização cultural” daqueles que foram, ou talvez ainda são, considerados como “selvagens”.

Esta reflexão é importante e revoluciona o modo de enxergar os museus. Usando das premissas de Walter Benjamin (1983) sobre a narrativa, podemos alargar seu pensamento para a nova compreensão dos museus. Ou seja, Benjamin afirmava que o sujeito, de certa forma, não está interessado em transmitir o “puro em si” da coisa narrada. A narrativa tem como princípio mergulhar na vida do narrador para em seguida retirar-se dele, são, assim, os filtros do que se quer manter como memória, ou melhor, as coisas que se quer partilhar coletivamente.

E também assim é a nova proposta dos museus e daqueles que acreditam que os arquivos são objetos de reflexão. Para Cunha (2004), o caráter artificial, polifônico e contingente das informações contidas nos arquivos – bem como as modalidades de uso e leituras que ensejam – tem sido repensado (pp. 292).

Continuando o argumento:

Diferentes análises e perspectivas em torno do uso e natureza dos acervos arquivísticos convergem em uma mesma preocupação: é preciso conceber os conhecimentos que compõem os arquivos como um sistema de enunciados, verdades parciais, interpretações histórica e culturalmente construídas – sujeitas à leitura e novas interpretações (idem, pp. 292).

Portanto, os museus - como arquivos - são meios discursivos. E os discursos, por sua vez, de acordo com Foucault (1996) são regulados, selecionados, organizados e redistribuídos, reunindo poderes em qualquer sociedade, isto é, as formações discursivas determinam o que pode e o que deve ser dito, assim como o que deve ser escrito. Assim, Foucault ressalta que a sociedade, por meio de suas regras, controla o discurso, para que este não seja falado de qualquer modo, “não se pode dizer tudo, não se pode falar de qualquer coisa” (pp. 05).

Se o discurso é selecionado, pode-se dizer que existem aqueles que são autorizados a falar e/ou a escrever. É neste instante que se faz preciso analisar as relações de poder-saber veiculadas na sociedade. Ter um olhar reflexivo para as engrenagens do arquivo e questionar as verdades discursivas fixas teve como conseqüência, por exemplo, a abertura do caminho para as mudanças das práticas dos museus.

Devo continuar. Eu não posso continuar. Devo continuar. Devo dizer palavras enquanto as houver. Devo dizê-las até que elas me encontrem. Até elas me dizerem — estranha dor, estranha falta. Devo continuar. Talvez isso já tenha acontecido. Talvez já me tenham dito. Talvez já me tenham levado até ao limiar da minha história, até à porta que se abre para a minha história. Espantar-me-ia que ela se abrisse (Foucault, 1996, pp. 01).

Essa abertura que considero como autoridade rompida é a capacidade atual dos museus realizarem um trabalho de efetivo contato com as memórias preservadas. Esse contato assemelha-se ao que Crapanzano (1991) identificava como diálogo em que os interlocutores compartilham uma visão conjunta da realidade.

O diálogo ‘cria um mundo’ ou, pelo menos, ‘uma compreensão de diferenças entre dois mundos’ e parece aproximar pessoas que estavam distanciadas. Há aí uma orientação fenomenológica implícita que enfatiza a constituição de um mundo comum, um entendimento comum, uma aproximação (idem, pp. 61).

E, assim, identificamos que as contextualizações dos arquivos dos museus fazem parte do que nos informou Clifford (2008) sob o novo paradigma da antropologia: o interpretativismo ou o desconstrutivismo. Conforme Clifford, “todo uso do pronome eu pressupõe um você, e cada instância do discurso é imediatamente ligada a uma situação específica, compartilhada; assim, não há nenhum significado discursivo sem interlocução e contexto” (pp. 41). Este modo de análise ressalta a importância em se fazer o estranhamento da autoridade etnográfica. A análise interpretativa ocorre na ação de se considerar que nem a experiência ou a atividade discursiva do pesquisador é inocente, ou seja, provedora da verdade.

Falar sobre os arquivos em museus é um debate complexo e cheio de pormenores conflitivos. Alguns acreditam que os objetos museológicos, fora de seus contextos sociais, são símbolos da conquista e ainda faltam ações efetivas que dêem espaço àqueles que ali têm suas memórias preservadas.

Esses objetivos serão alcançados somente quando houver a ampla abertura de espaços para a participação da sociedade no processo de construção e de apropriação de suas memórias e de seu patrimônio resguardados nos museus.

Pensar a preservação das memórias como uma prática social é compreender os arquivos dos museus como um processo de interpretação das culturas. Entretanto, é somente por meio da contextualização que se pode 1) aproximar o patrimônio da produção cultural, passada e presente; 2) viabilizar leituras da produção cultural dos diferentes grupos sociais, sobretudo daqueles cuja tradição é transmitida oralmente, que sejam mais próximas dos sentidos que essa produção tem para seus produtores e consumidores, dando-lhes voz não apenas na produção, mas também na leitura e preservação do sentido do seu patrimônio; e por fim criar melhores condições para que se cumpra o preceito constitucional do direito à memória como parte dos direitos culturais de toda a sociedade. Para Price:

A contextualização não mais representaria uma pesada carga de crenças e rituais esotéricos que afastam da nossa mente a beleza dos objetos, e sim um novo e esclarecedor par de óculos (Price, 2000, pp. 135).

Problematizar os museus como arquivos é um tema que se mostra relevante, pois é importante mudar a função dos museus como “simples depósito”, ou mostruário de peças exóticas para um instrumento cultural dinâmico de educação popular, ou seja, um órgão divulgador e valorizador das histórias e culturas de diversos grupos sociais.

Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov e sobre o conceito de história. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas. São Paulo: ESUSP, 1997.

CHAGAS, Mário de Souza. Museu, Literatura e emoção de lidar In Revista do Museu Antropológico. Museu Antropológico da UFG, v. 1, n. 1, 1992.

CLIFFORD, James. On Collecting Art and Culture. In The Predicament of Culture: Twentieth-Century Ethnography, Literature and Art. Cambridge, Massachussets/London: Harvard University Press, 1988.

________________. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.

CRAPANZANO, Vicent. Diálogo. Anuário Antropológico/88. Brasília: Editora UNB, 1991.

CUNHA, Olívia Maria G. da. Tempo imperfeito: uma etnografia do arquivo. Rio de Janeiro: Mana v. 10 nº 2, 2004.

FOUCAUT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva.São Paulo: Editora Centauro, 2004.


JÚNIOR, César Gordon; SILVA, Fabíola A. Objetos vivos: a curadoria da coleção etnográfica Xikrin-Kayapo' no Museu de Arqueologia e Etnologia - MAE/USP in Estudos Históricos (Antropologia e Arquivos), Rio de Janeiro, nº 36, julho-dezembro de2005.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

PRICE, Sally. Arte Primitiva em Centros Civilizados. Tradução Inês Alfano, Editora UFRJ, 2000.

SANT’ANNA, Márcia. A face imaterial do patrimônio cultural: os novos instrumentos de reconhecimento e valorização. In ABREU, Regina & CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

ENTRE PAISAGENS DE CLÁSSICOS

ENTRE PAISAGENS DE CLÁSSICOS[1]

Margarida do Amaral Silva[2]

1. Etnógrafo, etnografia

O que o eixo central do trabalho dos antropólogos tem empreendido, desde os estudos contidos em obras clássicas, é que se supõe “pesquisa etnográfica”, particularmente, o trabalho com uma cultura e com informantes que são como cartolas de mágico. Por vezes entende-se que “se tira alguma coisa (uma regra) que faz sentido num dia, no outro, só consegue-se fitas coloridas de baixo valor” (Da Matta, 1978: 32). E isso fica latente ao se contemplar um esboço do poder limitado de “tradução” que o conteúdo das cartolas - inseridas em paisagens de textos etnográficos clássicos - pode revelar. Assim, analisando-se parte do amplo compêndio de escrita etnográfica outrora produzida, o que se tem é que o trabalho dos antropólogos está, do começo ao fim, imerso nas dimensões frouxas da escrita, que traduz a realização de uma experiência espaço-temporal de forma narrativa e (con)textual.

Para Da Matta (1978: 32), o ofício do etnólogo está intrinsecamente ligado aos dados que “caem do céu como pingos de chuva”, pois, a pesquisa etnográfica, com observação participante e uso de informantes (sejam fontes humanas ou documentais), deriva àquele que se propôs narrar um papel que é demasiado extenso e profundo. Em relação aos dados, há de se relevar que cabe ao pesquisador autônomo, “apará-los, conduzindo-os em enxurrada para o oceano das teorias correntes” (Ibidem).

A identidade do trabalho antropológico tem sido estabelecida, com efeito científico, a partir da apreciação da abordagem metodológica empregada para compor o ofício etnográfico. A coleta de dados in locu, por exemplo, direciona alguns pesquisadores, já há um século, a alçarem pressupostos bilaterais sobre a natureza “profissional” ou “leiga” do trabalho de se empreender uma espécie de escrita de vidas.

O ir aos espaços-lugares, voltar com informações e convencer, de certo modo, de que “estiveram lá” e que “voltaram de lá” (Geertz, 2002), resulta na penetração do antropólogo em outra forma de vida, que é pontualmente experienciada. De fato, o que ocorre é que quando o campo é o campo, uma das peculiaridades cruciais da etnografia se torna a própria atuação/apropriação de uma determinada paisagem[3]. O autor-escritor depara-se com o poder da substancialidade factual de tempos e lugares, e a idéia persuasiva do convencimento que tem que ser empreendido pela via de sua escrita.

Conforme já considerou Clifford (1998: 20), a reflexão prática sobre uma representação sociocultural, notadamente, faz com que o trabalho de campo etnográfico permaneça como um método, via de regra, com suas bases fundadas no sensível, que está inserido nos espaços. Sobretudo, a “tradução” obriga o participante etnógrafo, física e intelectualmente, a praticar experimentações, por construção de arranjos e desarranjos de expectativas pessoais e culturais. Mesmo havendo o “mito do trabalho de campo”, raramente a experiência real e espaço-temporal, cercada como é por contingências, sobrevive a esse ideal. Portanto, “os estilos de descrição cultural são historicamente limitados e, ainda hoje, estão vivendo importantes metamorfoses” (Ibidem: 20-21).

Em certa medida, é certo que há dúvidas sobre a natureza das respostas que são dadas pelas coisas vistas, ouvidas e sentidas, e que se fazem imersas na narrativa etnográfica. Entre a “visão dos outros”, da “realidade” e da “sua própria experiência”, a literatura empreendida por clássicos, aos moldes de Frazer (1890; 1982), Mead (1935; 1969), Malinowiski (1922; 1978), Evans-Pritchard (1940; 2007) e Lévi-Strauss (1955; 2005), por exemplo, pode compor um universo de observação no qual o trabalho baseado na etnografia também configura a escrita como representação da alteridade dos espaços. Afinal, a autoridade etnográfica sempre permitiu que se demarcassem linhas de períodos, lugares, pessoas, instituições, que entrarão (ou não) em voga na paisagem cultural[4] que a escrita se propõe a compor.

Mas, encobertos ou não de relativismo, de algum modo, a escrita dos clássicos supracitados puderam suscitar novas visitas àquele universo de sentidos materiais e imateriais que, quase sempre, “caia do céu como pingos de chuva”. Viu-se, assim, que a escrita etnográfica é alegórica “tanto no nível de seu conteúdo (o que ela diz sobre as culturas e suas histórias) quanto no de sua forma (as implicações de seu modo de textualização)” (Clifford, 1998). Este “isso que representa aquilo” implica na pontuação de que, dos clássicos até hoje, a etnografia ainda é uma imposição explícita dos demais significados vinculados a uma experiência sensível, delimitado por um tempo e um espaço complexos, nos quais se mesclam natureza e cultura, objetividades e subjetividades, homens e paisagens.

E o caráter narrativo, ademais, associa o trabalho antropológico ao empreendimento de um projeto de realismo in locu. Desse empenho, nascem as alegorias. A cultura como texto e a antropologia como interpretação - ao envolver estruturas como subjetividade, dimensões de poder para os indivíduos, paisagens e tempos -, suscita indagações sobre o pensar a pesquisa etnográfica do antropólogo encarado como “pesquisador-autor” ou “tradutor” de vidas e feitos (SILVA, 2000).

E, isso, sobretudo, requer reflexões sobre as relações constituídas entre sujeito e objeto (entre homens, lugares, tempos, coisas e símbolos), através da análise do modo como operam. Por isso, o enfoque dado aqui para alguns enredos clássicos pode reajustar o olhar à notória presença do antropólogo em um campo de paisagens[5] que são universos de sentidos socioculturais, realocados nos discursos científicos posicionados entre aquele que etnografou e o “outro” que fora etnografado.

2. Paisagens de Clássicos: experienciar pelo ver, sentir e comunicar

O estar em tal época e em tal lugar, para a escola de clássicos, sugere a escolha de um cenário através do qual entra em voga o olhar. Mas, o “planejamento” de pesquisa, mesmo que sendo de caráter relativo e, em certa medida, passível de (re)considerações, segue, quase sempre, “ritos de passagem”. Para Da Matta (1978: 23-24) tais ritos (fases ou planos) fundamentais da pesquisa, possuem um recorte paradigmático. Da etapa teórico-intelectual – marcada pelo divórcio entre o pesquisador e o grupo, e a mediação teórica por livros, artigos, ensaios -, tem-se o período prático – a antevéspera da pesquisa na qual se especificiza e relativiza a própria experiência -, e, por fim, a fase pessoal e existencial – que trata das lições que se deve extrair de seu próprio caso, por uma certa visão de conjunto, dificilmente simétrico, a partir do ofício que se faz globalizador, integrador e contextualizado no espaço-tempo recortado.

Assim, já nos primeiros enredos etnográficos fica evidente que alguns “narradores de vidas” foram indivíduos que, de algum modo, através do contacto com diferentes culturas do seu tempo, puderam conceder registros e informações sobre “diferentes” paisagens, com homens e suas práticas nelas arraigados. Propondo, como Hoebel e Frost (1981: 3), que a antropologia é como “a ciência da humanidade e da cultura”, tem-se a dimensão pontual de que o estudo sistematizado do comportamento e da sociedade, como um misto, tem estreita relação com o empenho etnográfico em ver, sentir e comunicar o modo de vida de pessoas específicas, em lugares e tempos que recebem ou receberam as marcas de sua gente.

Nesse tocante, o modo empreendido aqui para compreender a tarefa etnográfica está para além das escolas, vertentes ou eixos metodológicos assumidos em campo e em discursos. O que está em questão, sobretudo, é um modo de se entender como tem sido feita uma ciência da humanidade, pela via de trabalhos antropológicos clássicos que, de modo geral, são também “um trabalho da imaginação” (Geertz, 2002), que está atado a tempos e espaços restritos.

Diz-se que nem mesmo a diversidade de sistematizações recebidas pela antropologia, em um século, afastou-a da humanidade como composto de seres biológicos pensantes, produtores de culturas e participantes de sociedades. E o antropólogo, inserido nesses universos de sentidos, feito de homens em lugares físicos e sociais, tem sido um “artializador” de paisagens culturais enquanto realidades complexas contempladas, na etnografia, pela tradução em palavras (Cf. Imagem 1: 5).

Quem não conhece o quadro de Turner sobre o ramo de ouro? A cena, banhada do brilho dourado da imaginação com que Turner impregnava e transfigurava até mesmo a mais bela paisagem natural: é uma visão onírica do lago silvestre de Nemi – “Espelho de Diana”, como era chamado pelos antigos. Quem tenha visto aquela água calma ao fundo de uma depressão verdejante dos montes Albanos, jamais poderá esquecê-la. As duas aldeias caracteristicamente italianas que dormem às suas margens, e o palácio igualmente italiano cujos jardins aterraçados descem em declive acentuado até o lago, não chegam a perturbar a tranqüilidade, a solidão mesmo, desse cenário. A própria Diana ainda poderia vagar por essas margens solitárias, caçar ainda nessas florestas (Frazer, 1890; 1982: 20).

É certo que o autor, na antropologia, ou em outros campos do discurso, juntamente com seus homens, as suas histórias, os seus deuses e as suas práticas, sempre viveu a falta de nitidez na natureza altamente situacional da descrição etnográfica. “Um dado etnográfico em tal época e tal lugar, com tais informantes, tais compromissos e tais experiências, representante de uma dada cultura e membro de uma certa classe, confere ao grosso do que é dito um caráter do tipo ‘é pegar ou largar’” (Geertz, 2002: 16). É valido dizer que o campo do sensível, das impressões e da percepção, de uma vez por todas, significa que o visto, sentido e comunicado pela etnografia, faz-se arena de reflexão e ponderação analítica.

Trata-se de uma “antropologia das representações sociais”[6], o discurso praticado nos domínios da etnografia. Constrói-se, se tece e se desconstrói situações, comportamentos, redes de significações simbólicas, que podem parecer reveladores dentro daquele conjunto de sociedade que fora edificado pela palavra do autor-escritor. Nos domínios etnográficos, o vínculo social esta marcado pelas abordagens feitas por representações, práticas e imaginários que formam uma cultura como categoria que une homens e a apropriação que é feita de paisagens (Cf. Imagem 2: 6; Imagens 3 e 4: 7).

Com raras exceções, as populações costeiras das ilhas do sul do Pacífico são – ou foram, antes de sua extinção – construídas de hábeis navegadores e comerciantes. Muitas delas produziram excelentes canoas grandes para a navegação marítima, usadas em expedições comerciais a lugares distantes ou incursões de guerra ou conquistas. Os papua-melanésios, habitantes da costa e das ilhas periféricas da Nova Guiné, não são exceção a esta regra. São todos, de maneira geral, navegadores destemidos, artesãos laboriosos, comerciantes perspicazes (Malinowiski, 1922; 1978: 17, grifos nossos).

Os povos de língua Arapesh ocupam um território em forma de cunha, que se estende a costa, através de uma tríplice fileira de íngremes montanhas, até as verdes planícies da bacia do Sepik em direção oeste. O povo do litoral continua em espírito um povo boscarejo. Adotaram das ilhas vizinhas o costume de construir canoas, porem se sentem mais a vontade na pesca, não no mar, mas nos poços escondidos entre os charcos e sagüeiros. Destestam o mar e constroem pequenos abrigos de folhas de palmeira, para evitar-lhe a invasão (Mead, 1935; 1969: 31, grifos nossos).

Os Nuer que chamam a si mesmoa de Nath, são aproximadamente duzentas mil almas que vivem nos pântanos e savanas planas que se estendem em ambos os lados do Nilo, ao sul de sua junção com os Sobat e o Bahr el Ghazal, em ambas as margens desses dois tributários. São altos, de membros longos e cabeças estreitas [...]. Culturalmente se assemelham aos Dinka, e os dois povos formam uma subdivisão do grupo nilota, que ocupa parte de uma área de cultura da África Oriental (Evans-Pritchard, 1940; 1973: 7, grifos nossos)

Na estrutura situacional do texto, que se faz registro antropológico, é possível encontrar o sentido do ritmo cultural das gentes, em especial, nas paisagens culturais inseridas em “estudos de casos”, com perspectiva discursiva flutuante a respeito das interações entre pessoas e territórios. E o construir textos a partir de experiências de campo, é o que situa o cenário geo-sociocultural para além de uma etnografia que seria mero jogo de palavras. Almeja-se produzir sentidos “conexos” por cenários na escrita.

O que fica exposto é que, também no tônus da etnografia, os elementos que compõem um campo, no qual se integram natureza e sociedades, são representados num universo unitário, a paisagem cultural, elaborado a partir da narrativa de um compêndio cultural heterogêneo. É obvio, porém, que as medidas usadas para expandir, dentro das narrativas, a proporção para uso do conceito de “natureza” e “sociedade” continua propenso a um amplo campo semântico, ainda completamente ponderável e discutível.

O território atravessado pela estrada de Santos é um dos mais explorados há muito tempo no país [...]. Encostas, taludes outrora arborizados deixam à vista suas ossaturas sob um fino manto de relva agreste. [...]. O viajante europeu fica desconcertado com essa paisagem que não se enquadra em nenhuma das categorias tradicionais. Ignoramos a natureza virgem, nossa paisagem é ostensivamente subjugada ao homem; às vezes, parece-nos selvagem, não porque o seja de fato, mas porque as trocas se produziram num ritmo mais lento [...] (Lévi-Strauss, 1955; 2005: 89, grifos nossos).

Mas, torna-se inegável o fato de que o habitat etnografado não foi tão somente resultante da experienciação de uma paisagem na qual a sociedade é, consequentemente, resultante da “oferta natural” de solo, clima, vegetação, altitude (Almeida, 2008). Por outro lado, é em um emaranhado de enredos clássicos que se percebe que a antropologia sempre esteve empenhada (apesar de suas vertentes e das particularidades teórico-metodológicas de cada uma delas) a compor paisagens socioculturais como um conjunto de dispositivos políticos, sociais e culturais contextualizados nos territórios específicos.

Ao expor que, também nos enredos clássicos, as identidades são dinâmicas, o entra em voga é que, ao se relacionarem com contextos sócioespaciais, os homens e seus produtos, inegavelmente, produziram aquele algo híbrido o qual denominamos “cultura”. O espaço público, que engloba parâmetros de natureza histórica, geográfica, política, social, tornar-se-á, pela via etnográfica, também o lugar público, indicador de uma topologia humana de existência e inserção espacial e sociocultural (Silva, 2009).

A paisagem cultural etnografada pelo trabalho narrativo empreendido por autores clássicos como Frazer (1890; 1982), Mead (1935; 1969), Malinowiski (1922; 1978), Evans-Pritchard (1940; 2007) e Lévi-Strauss (1955; 2005), verdadeiramente expressa que, entre a “visão dos outros”, da “realidade” e da “sua própria experiência”, o que se absorve são universos de sentidos. Daí, continua em evidência que a etnografia, ainda hoje, é um exame, um colocar coisas no papel, uma espécie de escrita pelo “experienciar” que jamais deixará de se somar ao conjunto que une pessoas, hábitos, lugares e tempos de maneira, essencialmente, apreciável e discutível a cada novo olhar analítico-cultural que se praticar.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Maria Geralda de. Diversidades paisagísticas e identidades territoriais e culturais no Brasil sertanejo. In: ALMEIDA, Maria Geralda de; CHAVEIRO, Eguimar Felício; BRAGA, Helaine Costa (Orgs.). Geografia e Cultura: os lugares da vida e a vida dos lugares. Goiânia: Editora Vieria, 2008, p. 47-75.

CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 1998.

Da MATTA, Roberto. O ofício do etnólogo, ou como ter “anthropological blues”. In: NUNES, Edson de Oliveira (Org.). A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 23-35.

EVANS-PRITCHARD, E. E. Os Nuer: uma descrição dos modos de subsistência e das instituições políticas de um povo nilota. São Paulo: Perspectiva, 2007.

FRAZER, Sir James George. O ramo de ouro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S.A., 1982.

GEERTZ, Clifford. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.

HOEBEL, E. Adamson; FROST, Everett L. Antropologia cultural e social. São Paulo: Cultrix, 1981.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

MALINOWISKI, Bronislaw. Os Argonautas do Pacífico: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

MEAD, Margareth. Sexo e Temperamento. São Paulo: Perspectiva, 1969.

MONS, Alain. A metáfora social: linguagem, território, comunicação. Porto/Pt: Rés Editora, 2000.

SILVA, Margarida do Amaral. Percepções no espaço-tempo brasileiro: o rancho em um lugar. In: Revista de História Comparada, UFRJ, n. 5, v. 5, mar./jul. 2009, p. 1-28.

SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia. São Paulo: EdUSP, 2000.

THE GOLDEN BOUGH. Ficheiro: golden bough. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Golden_bough.jpg. Capturado em: ago. 2009.



[1] Atividade entregue à disciplina ministrada pelo Prof. Dra. Maria Luiza Rodrigues Souza, intitulada Teoria Antropológica I, para fins de avaliação parcial neste módulo disciplinar.

[2] Discente do Mestrado em Antropologia Social, na Universidade Federal de Goiás/UFG.

[3] “A paisagem é uma construção, um produto da apropriação e da transformação do ambiente em cultura. Assim, os seres humanos lhe atribuem um significado. Então, [...] a paisagem é uma complexidade multiforme de realidades, de valores, de gestos e de vividos coexistentes” (Almeida, 2008: 47).

[4] A paisagem cultural não é somente o conjunto de relações entre os objetos presentes em um dado lugar, mas é também a convergência de percepções subjetivas sobre os tais objetos e relações.

[5] A paisagem ou paisagem cultural, aqui, será uma categoria usada para denotar o perfil geopolítico e, paralelamente, o caráter sociocultural de uma região, que seja demarcada basicamente pelas configurações sumidas pela presença humana no espaço-tempo.

[6] Cf. Mons (2000), A metáfora social: imagem, território, comunicação.