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domingo, 28 de junho de 2009

EXERCÍCIO DO OLHAR PELA “PAISAGEM E MEMÓRIA”: O TRABALHO AUTONARRATIVO DE HELENA SILVEIRA

EXERCÍCIO DO OLHAR PELA “PAISAGEM E MEMÓRIA”:

O TRABALHO AUTONARRATIVO DE HELENA SILVEIRA

1. A partir do imperativo autonarrativo de Helena

A escrita de biografias[1], autobiografias[2] e relatos de vida[3], a muito, direciona os limites das análises acerca dessas produções a extrapolarem os paradigmas que margeiam aqueles que narram as histórias. É preciso compreender como e para que um narrador conta - (re)cria – trajetórias individuais. Há, ainda, a necessidade de se submergir no imperativo das narrativas, como sendo trabalhos de artesãos[4], com densas (des)construções de pessoas, tempos e espaços marcados pelas impressões do “eu” que, por sua vez, estão ancoradas no fato discursivo de se tornar útil o exercício narrativo.

Inúmeras produções destes gêneros (biografias e autobiografias, em especial) tem ganhado ênfase nos meios acadêmicos e/ou literários de modo a realçar a existência de outros pontos nos quais a luz da “escrita de vidas” ganha espaço analítico específico. Convém considerar que o trabalho de narrar, por assim dizer, pode ser submetido ao foco compreensivo que compõe uma inter-relação primordial do “mundo” e do “eu” (ROSENTHAL, 1996). Com efeito, é importante ponderar, porém, que se a ação de “recordar” foi vista como um ato eminentemente individual, durante muito tempo, o que se negligenciou foi, sobretudo, a base social da memória (PERALTA, 2007).

Falar sobre o outro ou sobre si, pela grafia, no entanto, reacende discussões nas “sociedades do efêmero”, porque as memórias podem expor algo que, no toque do novo, pode amalgamar (nas arestas espaço-temporais) aquilo que não mais se esvairá. Então, por conta de subsistir pelas correntes vivas e latentes de palavras, narrativas e autonarrativas[5] também sugerem a existência de um compromisso com a ressignificação do trabalho de autores sobre as suas obras. Assim, considerando tal ofício como algo particular e socializado, ao mesmo tempo, há de se considerar analiticamente também as nuances de cada discurso que é elaborado nas obras que incluem “relatos de vida”.

Para Foucault (2009), o autor é um princípio completar ao discurso e, portanto, deve ser entendido para além daquele que pronunciou ou que escreveu um texto ou, por outra via, diz-se que ele “é um princípio de agrupamento do discurso, como unidade de origem de suas significações e como foco de sua coerência” (p. 26). Do ponto de visto foucaultiano, complementarmente, o autor tende a ser “aquele que dá à inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real” (p. 28).

Nesse sentido, ao se eleger o que poderia se denominar de “discurso-narrativa-relato” autobiográfico de Helena Silveira, em seu livro Paisagem e Memória - para a realização de uma análise reflexiva, mediada principalmente por termos como memória, paisagem e história -, o que se tenciona é expor um diálogo crítico por bases teóricas multidimensionais. E é no imperativo da autonarrativa de Helena Silveira, contida entre a realização de uma modalidade específica de trabalho etnográfico[6] pautado, até certo ponto, pela evocação de uma trajetória[7] e, por outro prisma, pela edificação de uma memória coletiva[8] e/ou social[9], é que se pretende evidenciar a fala pontual de uma “autora que escreve para além de si”, dentro de um mundo reconfigurado, em sua obra, afim de proporcionar um “aparte totalitário” do que fora a trajetória de vida de alguém.

Neste contexto de análise, somam-se ainda tons de uma autobiografia como sendo a “voz do passado” amalgamada, em grande parte, no fato de que toda fonte histórica, conforme Thompson (2002, p. 197), sendo derivada da percepção humana, torna-se subjetiva. E isso, de modo restrito em Paisagem e Memória, demonstra que a autonarrativa de Helena Silveira, desde sua concepção, está associada ao muito de sua experiência pessoal com os meandros da psicanálise. Afinal, foi “o estranho poder dos psicanalistas de ouvir e curar, de libertar das angústias e a culpa dos grilhões de um passado esquecido” que, implicitamente, fez com que Helena, por meio de sua expressão autobiográfica, repousasse pela penetração “na mais profunda intimidade que nunca havia partilhado com mais ninguém”.

Mas, por outra vertente, as paisagens e memórias, insurgidas na autonarrativa de Helena, também expõem os campos que permeiam a rememoração e a imaginação, como duas vertentes - em reconhecimento ao que Ricoeur (2007)[10] fez para entrelaçar memória, história e esquecimento -, pois a memória (ao contrário do imaginário) garante que algo ocorreu. Entretanto, o que se traz a tona por esse foco é que, “assim como na via da oralidade, a rememoração também é posta na via da narrativa, cuja estrutura pública é patente” (p. 26). E nessa esfera rememorativa e individual-social, a natureza discursiva da autobiografia, como um material relativamente autônomo torna-se, ainda, o possuidor de um corpo próprio e constituidor de algo “novo”.

Para Piña (1991) o relato é, ao mesmo tempo, um método e um produto, que não pode ser, de fato, um retrato fiel de algo exterior a ele. Destarte, a obra Paisagem e Memória é um trabalho situado, sobremaneira, no interior de uma ambigüidade que flutua “entre la representacion de uma individualidad consistent y, simultáneamente, el reconocimiento de um fenômeno supraindividual”. Ou seja, o imperativo autonarrativo de Helena está entrecortado por “uma concepción mista de ‘uma vida’, sus limites, y sintetiza casi estéticamente la tensión entre los campos posibles de libertad individual y el condicionamiento de los contextos estructrales” (p. 98).

Portanto, ao se propor uma “análise de Helena” (pelo exercício autobiográfico “feito por Helena”) muitos pontos podem ser evocados. Voltam à tona, entre os eixos de reflexão que podem partir de uma autobiografia, as questões que envolvem o trabalho etnográfico de qualquer pessoa que se proponha a relatar, principalmente por escritos, uma história que de modo simultâneo “descreve acontecimentos ‘reais’, com afirmações adicionais, morais, ideológicas e mesmo cosmológicas” (CLIFFORD, 1998, p. 65). Inclusive ressalta-se que, até certo ponto, esse também foi o trabalho de Helena Silveira: criar uma alegoria etnográfica tomada, naquele caso, como o fazer que “normalmente denota uma prática na qual a ficção narrativa continuamente se refere a outro padrão de idéias ou eventos”, isto é, “ela é representação que ‘interpreta’ a si mesma”.

Pode-se dizer, então, que Helena Silveira, por esta conotação de alegorista, concede em seu trabalho discursivo “especial atenção ao caráter narrativo das representações culturais, às histórias embutidas no próprio processo de representação”. Em suma, a alegoria de Helena tende a dizer que “essa é uma história (que carrega uma moral) sobre aquilo” (Ibidem, p. 65-66, grifos do autor), pois isso é evitar, a grosso modo, o uso das aspas nas verdades sobre o outro e sobre si mesma.

O que um livro situado entre Paisagem e Memória pode efetivamente suscitar é, sobretudo, a demasiada inserção no universo das palavras, no mundo de sentidos construídos por uma autora. Muito provavelmente, o que Crapanzano (1991, p. 71) chamou de “ilusão autobiográfica”[11] margeie, de forma relevante e complementar, a existência da hipótese de se ignorar, erroneamente, “as estratégias literárias – as convenções e constrangimentos genéricos – através do qual o autor se auto-representa”.

Ganha voga, aqui, o que nas considerações de Bourdieu (1996) torna patente que se preste atenção tanto à forma de produção como a de recepção da “explicação histórica” de autores e obras. Vale ponderar que o “fazer” discursivo do escritor tende a “evocar a relação com o público, que também tem um papel determinante” e, ainda, fazer uma análise de “campos de possíveis” nos quais caiba compreender a obra de arte como “um produto histórico de um lento e longo trabalho coletivo de abstração da quintessência que, em cada um dos gêneros, poesia, romance ou teatro, acompanhou a autonomização do campo de produção” (p. 71-36).

Assim, por se tratar de um âmbito de investigação tão vasto, a obra de Helena Silveira, construída entre as mais diversificadas versões de paisagens e memórias, faz-se terreno de “minguadas experiências”, inclusive, questionadas pela própria autora: “Testemunho da cultura de meu tempo, das artes, da literatura? O que não foi cultura, uma cultura toda arbitrária, uma literatura criada [...]? E a vida, paralelamente, tão pouco vida, tão mais literatura?” (SILVEIRA, 1983, p. 10-11).

Assim, como um “esboço singular de vidas aos olhos de uma vida”, não diferentemente de outras tantas autobiografias, Paisagem e Memória torna-se, neste contexto, um material que assume grande relevo devido a proporcionar um exercício crítico que é capaz de suportar as mais diversas perspectivas teóricas. Por isso, será útil proceder a uma análise que esteja aberta a abarcar um campo de investigação por uma perspectiva multidimensional, pois o que se pretende é expor, por vários eixos, paisagens e memórias (des)construídas em tempos e espaços de Helena, a autora.

2. Entre paisagens e memórias quase casuais

Um vasto compêndio de possíveis documentações sobre o que se pode denominar “mundo feminino” – diários íntimos, memórias, autobiografias, romances memorialísticos, correspondências, papéis avulsos com notas pessoais -, somente na atualidade, passou a ser considerado como fonte potencial de pesquisa principalmente à história, à antropologia e à literatura.

As construções discursivas de memórias, em geral, tornou notáveis poucos dos escritores ou escritoras aventureiros da vida-pessoal-escrita. Factualmente, a escrita feminina no Brasil teve durante décadas muitas produções de natureza confessional, privada e informacional, quase que como via de regra, determinando “o desprestígio documental e suspeito valor textual de muitos escritos que foram queimados, guardados ou deteriorados pela ação do tempo e do esquecimento” (LACERDA, 2002, p. 19).

Boa parte da escrita de voz feminina brasileira, por exemplo, não saiu do anonimato, em especial, aquelas produzidas por mulheres que não se fizeram (re)conhecidas pelos cânones literários e pelos críticos editoriais e comerciais que envolvem a economia política por detrás dos livros[12]. Mas, a obra Paisagem e Memória dá pistas do contrário em seus enredos, demonstrando que esse não foi efetivamente o caso da escritora e jornalista Helena Silveira.

Uma etapa nova iniciava-se com um telefone de Edgard Cavalheiro, então habitando os artigos dos suplementos literários e diretor, em São Paulo, da editora Globo de Porto Alegre: “Tenho lido seus contos ilustrados por Belmonte. Você não tem parentesco algum com os Silveiras: Alarico, Dinah, Miroel?”. “Sim. Sou filha, irmã e prima-irmã”. O querido Edgard, que depois se tornaria meu amigo, estranhou que eu não tivesse lançado mão de meu parentesco para abrir caminho na literatura [...]. Convidou-me a ir até seu escritório [...], e me mostrou todos os recortes de meus contos. Bastaria que eu fizesse uma escolha e ele os editaria. Ora, naquela época o gênero conto era considerado como “veneno” de livraria. [...]. Via de regra, escritor novato não tinha vez em vendas, por isto editava suas estréias por conta própria. Fui logo estreando na literatura como exceção. [...]. A esta altura, meu amigo e editor convencera-me de que eu era verdadeiramente uma “grande escritora” (SILVEIRA, 1983, p. 35-36, grifo nosso).

Mas o tempo corria. [...]. A esta altura, Edgar Cavalheiro pôs-me nas mãos o primeiro volume de A Humilde Espera. Lembro-me da capa, do cheiro de papel, da letra de forma recém-parida. [...]. Minha vaidade era estimulada por uma crítica fortemente positiva (como nas análises de laboratório). Tive rodapés em O Estado de S. Paulo, na Folha da Manhã e em quase todos os suplementos literários de São Paulo e Rio. Para um estreante, era muita coisa (Ibidem, p. 39-40, grifos da autora).

Efetivamente, como um marco divisor de águas, os títulos de autoria feminina começaram timidamente a serem editados no Brasil, em sua grande maioria, “a partir da década de 1960, concentrando-se no crescimento editorial ocorrido entre os anos de setenta e oitenta” (Ibidem, p. 19). E Paisagem e Memória, como uma obra publicada neste período, tem na biografia de Helena, contida na página final desta sua autobiografia (publicada em 1983), uma comprovação de que essa escritora foi uma “voz feminina” saída do anonimato, como símbolo pioneiro de uma velha e de uma nova fase.

Helena Silveira estreou na literatura com o conto Vida com ilustração de Belmonte, publicado em página inteira do Suplemento Literário da então Folha da Manhã. Passou a colaborar assiduamente nesse matutino e terminou por ser contratada como redatora. Até hoje (1980) trabalha nessa empresa jornalística. Ao mesmo tempo em que iniciava sua carreira de jornalista, começava a de escritora. Em fins de 1944 saia o seu primeiro livro de contos A Humilde Espera, editado pela Globo de Porto Alegre. Anos após publicou Mulheres, frequentemente pela editora Martins. Em 1950, a Martins editaria seu drama No Fundo do Poço e Maria Della Costa e Sandro Polloni o levariam ao palco do Teatro da Cultura Artística. Muito sucesso e muita polêmica. Oswalde de Andrade se apaixona pela Peça. Ganhou prêmios vários com seus contos: Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras e Antônio de Alcântara Machado, da Academia Paulista de Letras. Trabalhando em rádio e televisão, ganhou o Roquete Pinto e a Globo deu seu nome – o Troféu Helena Silveira – aos Melhores do Ano de 1970 a 75. Publicou Damasco e Outros Caminhos, pela editora Martins. Publicou a coletânea de contos Sombra Azul e Carneiro Branco pela editora Cultrix. A Editora Edart publicaria seu livro Os Dias Chineses. A editora Civilização Brasileira editaria seu romance Na Selva de São Paulo. A editora Símbolo publicaria Memória da Terra Assassinada. Teve a peça No Fundo do Poço representada na Alemanha. Teve contos traduzidos e publicados na França, no México e EUA. No volume Os Dez Mandamentos, editado pela Civilização Brasileira, saiu seu conto A Terra Cobre Nada (Não Levantar Falso Testemunho). Colaborou em diversas revistas e jornais com novelas e contos. Participou de diversas antologias. Foi presidente da União Brasileira de Escritores. Pertence à Academia Paulista de Jornalismo” (SILVEIRA, 1983, p. 241, grifos da autora).

Helena Silveira, assim, como figura representativa da escrita feminina paulistana, torna-se uma mulher, que ao contrário de tantas outras, pôde se sobressair autobiograficamente tanto pelo jornalismo, quanto pelas produções literárias e, também, pela sua inserção na mídia radialista e, depois, televisiva.

Escritora e jornalista, conhecida pela coluna que mantinha na Folha de São Paulo, Helena Vê TV, dedicada à crítica dos programas e artistas de televisão. Pertencente a uma família de escritores, era irmã de Dinah Silveira de Queiroz e prima de Rachel de Queiroz, as duas primeiras mulheres a serem aceitas na Academia Brasileira de Letras. Natural de São Paulo, Helena passou a infância em Casa Branca e em Batatais, fazendo seus estudos na capital. Viajou para a Europa e cursou a Comedie Francaise. Ingressou no Correio da Manhã em 1941 e, em 1945, lançava seu primeiro livro, A Humanidade Espera. Chegou a viver no Líbano e na Líbia, onde se inspirou para escrever Damasco e Outros Caminhos (1957). De sua viagem à China, criou Os Dias Chineses (1961). É de sua autoria dezenas de livros, onde também se destacam Mulheres Frequentemente (1945), Na Selva de São Paulo (1966) e Sombra Azul. Além da literatura, dedicava-se ao teatro, escrevendo a peça No Fundo do Poço em 1950, junto ao marido, Jamil Almansur Haddad. A peça A Torre, também de 1950, ganhou o prêmio do Departamento de Cultura de São Paulo. Helena participou de movimentos contra a censura e liberdade de informação, tendo também aderido à causa feminista. [...]. Helena Silveira faleceu aos 73 anos, em 31 de agosto de 1984 (MEMORIAL DA FAMA, 2009, grifos do autor).

Paisagem e Memória, um retrato de época lançado por Helena aos 70 anos (em 1983, pouco tempo antes de sua morte, que ocorreria em 1984), tende a identificar a trajetória de vida de uma mulher do século XX enquanto singular exemplo da escritora que surgiu “quase casual”, com escritos sobre “os acasos da vida cotidiana dos outros e de si”, paralelemante.

Um casamento malogrado, muito mais pela nossa imaturidade do que por qualquer outro fator. Mas, a verdade é que os treze anos de matrimônio foram para mim uma espécie de aprendizado de solidão. Nessa extrema solidão fui elaborando meus primeiros contos. Comprei uma máquina de escrever portátil. Fechava-me num aposento e escrevia pequenas histórias em que havia sempre uma solitária mulher em descompasso com a vida. Mais tarde, Mário da Silva Brito escreveu que a minha literatura era cheia de homens grandes levando pela mão uma criança pequena. [...]. Medrosa, eu mais me fechei com meus escritos. Mas fui muito animada a escrever por meu pai com quem mantinha contínua correspondência. Ele – pai-coruja – admirava-me o estilo epistolar, frisava que poucas pessoas teriam este dom do rabisco de cartas. Enfim, embora o gênero esteja em extinção, foi através dele que comecei a escrever contos em que aproveitava o dom que me era apontado. Assim escrevi “Meu Velho Hábito” – carta em que u’a mulher diz ao marido que pode voltar – e “Fragmentos da Carta de uma Viúva Triste. Um dia, foi visitar-me na casa da Alameda Lorena, 1470, o jornalista Mariano Costa. Mostrei-lhe alguns de meus contos. Ele tomou um calhamaço e por no bolso. Não disse nada. No domingo seguinte quase morri de susto quando vi uma página inteira da então Folha da Manhã com meu conto “Vida” ilustrado por Belmonte. Daí sugiram outros contos, todos ilustrados pelo mesmo artista. Rui Bloem era, então, o editor do suplemento literário do jornal e incentivava-me a escrever. [...]. Mas as redações, também, me amedrontavam (p. 32-33).

Porém, há de se compreender as principais nuances da escrita discursiva de Helena, pois ao narrar “algo de sua vida”, em Paisagem e Memória, o que ela tenciona é expor “algo que esta para além de uma vida”, pois até mesmo as imagens espaciais desempenham um papel naquelas “paisagens da memória”, já que um lugar ocupado recebeu a marca de alguém e de seu grupo (HALBWACHS, 2006). Por isso, é importante se admitir que Helena deu evidências autobiográficas de que participou, enquanto indivíduo, de dois tipos de memória. Por um lado, “suas lembranças teriam lugar no contexto de sua personalidade ou de sua vida pessoal”; e, por outra vertente, a autora se comporta, em seu discurso, “como membro de um grupo que contribui para evocar e manter lembranças impessoais” (Ibidem, p. 71).

E os relatos autobiográficos, no caso da obra Paisagem e Memória, por conseguinte, “se interpenetram como memória individual e memória coletiva”, conforme considerou Halbwachs (2006, p. 73). Daí, ficam mais claras as intenções contidas nos imperativos autonarrativos de Helena quando ressaltou, com efeito, que o seu primeiro marido deu-lhe “contornos difíceis de aceitar”, principalmente, porque naquele casamento ela percebera que a “sua identidade era dada pelo outro” (SILVEIRA, 1983, p. 26). E, por conta desse surpreendente convívio conflitual com “a identidade do outro”, Helena destaca que, ao final de “um casamento deveras desastroso aquele da mocinha cheia de devaneios com o estudante de Direito, Alcino Teixeira Leite”, é que passou a procurar trabalho, porque, “como uma tola romântica”, achou “lindo o desafio de ter de sustentar os dois filhos” (Ibidem, p. 43).

Então, pelo discurso também construído a partir de memórias individuais e coletivas tornou-se evidente os motivos que, entre os anos 30 e 40, direcionaram Helena (que já era escritora casual) a ser forjada jornalista. Assim, dedicada à escrita de reportagens, esta autora também fez crítica de cinema, crítica literária, sendo que seus escritos estavam, reconhecidamente, interligados aos fatos do que se pode chamar de acaso paulistano expresso, conforme a própria Helena estigmatizou, por uma “renovada linguagem do mundanismo” na escrita de crônicas sociais. “Eu ganhava o pão de cada dia, o livro de cada dia, a roupa de cada dia”. Entretanto, “num tempo em que não havia reajustes salariais, quando se pedia aumento à empresa, esta, com o aumento, pedia mais trabalho. Por duas vezes tive esgotamento nervoso” (SILVEIRA, 1983, p. 90).

Iam surgindo, por esses moldes, as “paisagens e memórias quase casuais de Helena”, derivadas das impressões que a autora tinha dos outros e de si. Acima de tudo, a ênfase autobiográfica para o dever de prover o sustento dos filhos ainda pequenos, fez com que Helena, inclusive, declarasse que foram “roubados seus poucos momentos que teria para a criação literária”, porque o dever jornalístico “era o ganha-pão” (p. 45). E, em Paisagem e Memória, a autora revela: “na época em que idéias de criação literária fervilham dentro de mim, eu era obrigada a levar para a então Folha da Manhã laudas e laudas de reportagens” (p. 33).

A responsabilidade pelo fracasso de meu casamento era estritamente minha. Não se usava, na época, a palavra assumir. Mas foi o que fiz: assumi a situação. Não tinha diploma. Lembrei-me, então, dos contos publicados na Folha da Manhã. Sabia que secretariava o jornal um grande amigo de meu pai, Rubens do Amaral que, também, vinha ser primo-irmão do poeta Amadeu Amaral. Telefonei-lhe explicando meu caso, pedindo-lhe que me indicasse um caminho. [...]. Dali a alguns instantes, ele estava em minha casa. “Amanhã você vai entrar na folha de pagamento do jornal”. Cuidei que ele fosse me pedir crônicas, resenhas de livros, criticas. Ele decretou: “Você vai ser cronista social” (p. 43).

Todavia, o que se torna latente dizer agora, é que pela escrita autobiográfica, o que fora passado tornou-se (pelo discurso de Helena) impressão, narrativa, relato e descrição. Através do “retrato proposital de época”, empreendido em Paisagem e Memória, é que se pode compreender os “recortes de vida” outrora escritos por Helena, de modo a se identificar sua trajetória num mundo feminino construído por palavras não-cronológicas.

Acredito que “memória” seja, exatamente, isto: tudo o que não passou pelo crivo do esquecimento, tudo que grudou na pele, no sangue, na cabeça do memorialista. Por este fluir do rio da memória, cheio de curvas, de voltas que o conduzem quase à sua nascente, me vem vindo este relato. Quem o ler não procure o tempo disciplinado, consultado em arquivos. Nada tenho de uma pesquisadora. Quero, com o leitor, um passeio descompromissado com cronologias. Não se espantem se os decênios não se compuserem alinhados como pessoas bem-comportadas, que, de repente, eu volte da mocidade à infância ou desta pule para a maturidade. Não sei de outro método lidar com as coisas idas (Ibid., p. 53, grifo nosso).

Tratar com imperativos narrativos de Helena Silveira, por conseguinte, é presenciar as múltiplas maneiras com que aflora a coisa narrada por alguém: “se não como a de quem vivência, pelo menos como a de quem relata” (BENJAMIN, 1983, p. 63). É a arte artesanal da narração que Helena se propõe a compor, pois o que se vê em Paisagem e Memória é um trabalho de artesã: “Engraçado este processo de criação. A gente escreve, pelo menos no meu caso, sem procurar assunto. De repente, o santo baixa, é quase um fenômeno mediúnico”. E a autora prossegue: “Muito tempo depois da coisa parida em letra de forma, nosso texto nos entrega suas chaves. Depois, penetramos em seu âmago encoberto” (SILVEIRA, 1983, p. 114).

E esta “arte artesanal”, em seu trabalho associado à paisagem e à memória, faz com que a “etnógrafa e historiografista” Helena Silveira apresente tendências explícitas, conforme considerou Pereira (2000), a selecionar e a construir o texto com base em uma “história de vida” que é ocasionada pelo Rosenthal (1996) denomina como “vida de experiência do mundo”.

Escrevi esta Paisagem e Memória fragmentariamente. Tempo ruim para mim e para o país. [...]. Pediram-me que eu testemunhasse meu tempo no terreno cultural. Procurei fazer isso. E digo logo: desordenadamente, fora de cronologias. Afastei de pesquisas. Penso que estas me atrapalhariam muito. Nada tenho de historiadora. Deixo que o tempo filtre em mim e, o que fica, é memória. [...]. Os mesmos fatos vistos por angulações diversas fazem os memorialistas com seus valores e desvalores. Relendo estas páginas vejo que ela se ressentem muito da ausência da visão política pós-64. Visão martirizante. A encomenda feita não incluía estes anos. Pediram-me muito mais registros das décadas anteriores: 40, 50. Procurei fazer. Isto não impede um segundo volume onde possa narra-me a mim e ao tempo escoando. Mestre Chacrinha diz: “Não vim para explicar, mas para confundir”. Isto é bom para os jornalistas. As confusões são nosso sistema de revoluções brancas. Estabelecida a confusão, chegam as pessoas que foram feitas para ordenar tudo. Aí é que a sociedade passa para outra. Poderá ser renovação ou retrocesso, mas jamais será a mesma coisa (SILVEIRA, 1983, p. 9, grifos nossos).

Benjamin (1983) avalia que a tendência dos narradores, acima de tudo, é a de enfatizar a matéria de onde surgem as histórias de sua vida vivida. Nesta mesma via, Halbwachs (1968 apud PERALTA, 2007) considera que a função primordial da memória, enquanto imagem partilhada do passado, é a de promover um laço de filiação entre os membros de um grupo com base em seu passado coletivo, conferindo-lhe uma ilusão de imaturidade, ao mesmo tempo que cristaliza valores e a acepções predominantes do grupo ao qual as memórias se referem.

A escritora-jornalista Helena Silveira se expôs a fim de compor uma identidade de grupo, quase que a assegurando no tempo e no espaço. É o que Bosi (2006) chamaria de “trabalhos da memória”[13]. O que Helena realiza, todavia, é a descrição da substância social da memória – a matéria lembrada – mostrando que o modo de lembrar é individual e coletivo: “o grupo transmite, retém e reforça as lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-las, vai paulatinamente individualizando a memória comunitária e, no que lembra e como lembra, faz com que fique o que signifique” (p. 31).

Estamos nós, da imprensa ou da literatura, em permanente processo dinâmico, errando e acertando. Os leitores, talvez, encontrem nestas páginas muitos erros e breves acertos. Tenho em mente que isto não é uma prestação de contas. Toda vida é uma experiência. Ofereço minhas minguadas experiências. Modelo e antimodelo são igualmente válidos. Talvez estas páginas contenham mais paisagem que memórias. Que o leitor, paciente, tome as duas, cogitando que, nestas linhas, não há fantasia e sim realidade, o que não impede, paradoxalmente, que o sonho possa eclodir de vez em quando (SILVEIRA, 1983, p. 9, grifos nossos).

O ato etnográfico que se retém aos dados de uma cultura, de um grupo, de alguém do grupo, faz com que, por vezes, a etnografia venha a se apresente como “um mero jogo de palavras, como se presume que sejam os poemas e os romances” (GEERTZ, 2006, p. 13). Mas, ambiguamente, este trabalho faz com que “a lembrança institua a corrente da tradição que transmite o acontecido de geração a geração” (BENJAMIN, 1983, p. 67). Como eixo central, aponta-se então que um empreendimento etnográfico que caminha pela descrição de cenários e indivíduos, deve supor uma preocupação científica e uma preocupação humanista que, no entender geertziano, “não seja suficientemente neutra e nem somente engajado” (2006, p. 28).

Tomando o exemplo a autobiografia de Helena, conforme apontou Clifford (1998, p. 58), nota-se a sua “autoridade etnográfica enquanto lugar de invenção” quando tece considerações sobre a natureza de sua obra: “testemunho da cultura de meu tempo, das artes, da literatura? O que não foi cultura, uma cultura toda arbitrária, uma literatura criada, como dizia meu pai, Deus cria macacos? E a vida, paralelamente, tão pouco vida tão mais literatura?” (SILVEIRA, 1983, p. 11). Entre as paisagens de seu tempo, Helena Silveira se (re)constrói: “Marquei um breve tempo de puro êxtase entre paisagens de terra e paisagens humanas” (SILVEIRA, 1983, p. 165, grifo nosso). Assim, pela análise de uma das suas crônicas jornalísticas, a própria autora também se conclui auto-analiticamente: “Ficou-me claríssimo que aquela ‘Hamadríade’[14] era um auto-retrato”.

Rompeu a casca da árvore, olhou em torno e viu que havia mundo, e este estava mal-feito. Quis voltar para seu oco de tronco, mas percebeu que a vida é, sobretudo, visão, e ela havia visto. Calçou sandálias nos pés nus e pôs vestidos vagamente na moda. Escolheu uma profissão e uma família. Como era feita para deitar raízes, fincou estas no efêmero. Todas julgavam-na disparata; entretanto, ela sabia-se díadre. À sua sombra, criaturas adormecem e não lhe perdoaram, depois, a ternura da galharia. Como poderia uma mulher ser tão frondosa e suprir a muitos, sem que nada estancasse a sua seiva? Não sabiam da força de seu pés fincados na terra, aprendendo a dinâmica dos passos. Escolheu todas as rosas-do-vento por morada e desenhou-se em todos os horizontes. Afinal de contas, de que adianta uma arvore se não é para abrigar o peregrino? O que vem e vai para longe? O itinerante da aventura? Não podendo ser estável e nítida, erguendo seu fuste vegetal, enlouqueceu um pouco na demanda dos que pudesse abrigar e lhe dessem um sentido. Tenho que era isso que ela desejava ter: um sentido para aquela subterrânea vida verde, aquele sangue vindo dos confins de uma confusa floresta. Sentia bosques mortos em qualquer gesto que desenhasse. Entre ela e os outros, jamais pode haver liames fortes como amarras de cipó, ou abraço enredado de heras. Cansou-se de viver sem explicação e destino, solitária, com a nostalgia do húmus da terra e o compromisso com o largo vento dos descampados. Assim, um dia, estava em uma reunião social entre um banqueiro e um cantor de tangos, em face de um fabricante de tecidos e de uma poeta. O vizinho da direita disse que a conhecia de vista e ela ficou séria: ‘Gostaria que o senhor me apresentasse a mim mesma’... Todos riram porque seu copo estava cheio de vinho. Talvez, então, ela sentisse o apelo alto, subindo no sangue. Deitou a correr e todos a seguiram, contagiados pela força que a arrastava. [...]. Foi então que a Hamadríade dissolveu-se num tronco de árvore. Alguém ainda colheu a sandália e ouviu confusamente sua voz ergastulada para sempre, demandando o alto-falante das folhas, muito acima dos homens... (SILVEIRA, 1983, p. 112-113).

Helena, ao posicionar-se entre as imagens-lembranças de tempos e espaços que estavam além dos grandes jardins paulistanos projetados pelo modismo do paisagismo, “a menina criada entre paisagens fazendeiras jamais esqueceu a coma verde a lhe servir de cabeleira. E se enfiou em salões e se ligou a pessoas que nada lhe diziam, mas que vinham a compor o seu mundo, por dever de ofício” (Ibidem, p. 114). Provavelmente, por isso, esta escritora inicie a sua autobiografia dizendo que “talvez, estas páginas contenham mais paisagens do que memórias” (Ibid., p. 9). E, então, a narrativa que, para Benjamin (1983), não se exaure, torna-se coesa na Paisagem e Memória de Helena, conservando força capaz de possuir desdobramentos mesmo depois de passado muito tempo.

3. Elas, Eles, Helena e Nós

“Diziam que eu era uma menina inteligente. Então, meu peito apertava: um dia não acharão mais graça de mim... é necessário que eu sempre lhes dê motivo de admiração” (SILVEIRA, 1983, p. 11). Helena foi assim: a criança órfã criada à sombra da “deusa defunta Dinorah”, sua mãe falecida, e das “deusas sacerdotisas que se chamavam Sinhá (a tia-avó Maria Cândida), Alzira, Lavínia e outra tia-avó de nome Zelinda” (Ibidem, p. 12-13). Considerou sua infância estranha, repartida entre pequenas temporadas em São Paulo – com o pai intelectual - e largos meses de euforia fazendeira – com a família materna. “O conflito entre as duas famílias – a intelectual e a de bons fazendeiros – singularizou minha educação. Cada um dava-me uma identidade [...]. Flutuava, filha da deusa morta e da mãe viva e atuante” (Ibid., p. 23).

Em sua autonarrativa Paisagem e Memória, relata Helena Silveira que o que mais marcou a sua vida, e a de sua irmã Dinah, fora “o sentimento de orfandade que a querida mãe de criação quis incutir como destino inarredável”. Dessa forma, as tias que “não se conformavam com a morte da sobrinha tão dotada e plena mocidade”, fizeram necessário “cultivar no peito das filhas a dor da orfandade”.

A verdade é que, construindo esta obra de ficção que foi minha mãe morta, eu espremia lágrimas que não me vinham aos olhos. Procurava em torno motivos para o choro. E só via coisas que me exaltavam: pomares, jardins, a mãe viva para amar e a outra que, de certa forma, dependia de mim: eu a fazia, a meu gosto, a minha bela deusa defunta. Creio que esse fantasma da mãe morta logo que eu nascia foi resolvido por mim na infância. Em Dinah, ela dormiu longos anos e minha irmã a construiu em pedaços em criaturas de ficção quando fez seu primeiro romance: Floradas da Serra. [...]. Mas aquela estranha desconhecida Maria Cândida que montara casa numa chácara dos Campos Elísios, onde hoje é a Estação da Sorocabana, foi modelo para que minha irmã Dinah fizesse a Mãe Cândida de A Muralha (SILVEIRA, 1983, p. 12-15).

Mas, apesar das singularidades de sua juventude, a escritora narra que muito cedo “tinha a intuição de que a perda da infância seria a perda do paraíso”, já que o amor e a segurança tinham um preço: “e eu vou crescer, vou para o colégio, verei outras faces que não essas já decoradas em amor e ternura” (p. 11). E Helena, nos meandros de sua trajetória de vida, passa a decretar ao leitor de seu relato autobiográfico que o mesmo imagine uma norma cultural diferente e, depois, reconheça uma experiência humana comum (CLIFFORD, 1998).

Tinha quatro anos quando fiquei densa, pesada de uma estranha sabedoria. Morávamos na Rua Maranhão, em São Paulo. Certa madrugada, a casa ainda escura, desci as escadas. Deslizei pelas salas, abri a porta da cozinha suspendendo-me nas pontas dos pés. E aí tié a grande revelação: o sol nascia nos ladrilhos brancos. O sol estava ali, petrificado, uma brasa com reverberações. Só nos ladrilhos ele morava. Depois, lentamente, foi ganhando corredores e salas. “Despejou-se pelo jardim, pelo mundo” – eu pensei. Guardei para mim essa maravilhosa ciência surpreendida. Já reparara que os adultos riam quando eu lhes conava coisas solenes: “Só eu sei que o sol nasce nos ladrilhos da cozinha” – e mirava a cara da gente grande, à mesa: tio Honório, mamãe, Alzira, Durval, Lavínia. Era comum, ao terminar a refeição da noite, me porem-me em cima de uma cadeira. Eu ficava de pé, como uma tribuna. Mandavam-me recitar ou improvisar discursos. Gostava mais dos últimos por me fornecerem o dom de inventar palavras. [...]. Eu vibrava (SILVEIRA, 1983 apud LACERDA, 2002, p. 19).

Criada entre um lado paterno da família, “de racionalidade romântica”, e outro, “de fazendeiros”, Helena Silveira fez-se mulher cercada por mulheres e homens que conduziram sua vida. Mas, acreditando no “poder mágico das palavras” sofreu em vida, pelos moldes de um “acaso previsto”, a grande influência da “família de intelectuais” que fazia de seu pai, o grande erudito Alarico Silveira[15], e de sua irmã, Dinah Silveira de Queiroz[16] uma promissora escritora, com títulos aclamados pelo público, a exemplo da obra A Muralha.

Filha de intelectual (o pai viúvo Alarico Silveira), irmã (Dinah Silveira de Queiroz), sobrinha (Valdomiro Silveira) e parente (Raquel de Queiroz[17]) de escritores, esposa (do segundo marido Jamil Almansur Haddad) e amiga (Oswald de Andrade) de intelectuais, jornalistas, artistas, compositores, pintores, de cunho nacional e internacional. Enfim, Helena Silveira cresceu e viveu entre paisagens demonstrativas da “elite cultural moldada por preceitos da burguesia” de um tempo que se vivia a constante indagação do “aquele que se deve convidar”, pois a “valorização do artista era dada dentro de um sistema” (SILVEIRA, 1983, p. 51).

Quando o prefeito da Capital, o Dr. Washington Luís nomeou papai diretor dos Parques e Jardins e da Limpeza Pública. Aí, ele me levava pela mão a ver plantar os ipês da Avenida Paulista. [...] Batizou de “Ipês Silveira”. [...]. Quando minha família materna resolveu ficar mais tempo em São Paulo, minha convivência com meu pai aumentou. [...]. Ali, almoçando junto à biblioteca, vim a conhecer Monteiro Lobato, Cassiano Ricardo, Raul Bopp, Menotti del Picchia, Plínio Salgado (o autor de “O Estrangeiro”, saído das idéias do Movimento da Anta, chefiado pelo meu pai). [...]. Papai sabia tupi, guarani, discorria dando grandes passadas pela sala. Estava a esta altura no posto de secretário da Educação de Washington Luís. [...]. Desde o tempo em que minha memória, sempre vi meu pai com um caderninho de mão. Anotava palavras. Vivia sempre encoberto de língua portuguesa. Tirava verbetes de longas conversas com ítalo-paulistas, com gente que formara um vocabulário regional. Não sabia, então, que estava a nascer o Dicionário Brasileiro de Alarico Silveira (SILVEIRA, 1983, p. 15-16, grifo nosso).

Maria Cândida Ribeiro Machado tinha o apelido de “Sinhá”. Filha do capitão Luciano Ribeiro Nogueira e Maria Cândida Ribeiro da Silva Nogueira (principal personagem feminina da novela A Muralha, de minha irmã Dinah Silveira de Queiroz) (Ibidem, p. 23).

Lembro-me que tudo me parecia mágico. As passadas de meu pai, o que contava sobre a grandeza do irmão mais velho. Chegamos à residência da Rua Conselheiro Nébias. Fui introduzida numa sala toda iluminada. À cabeceira havia um homem moreno [...]. À sua direita estava outro homem, sem um braço, e à esquerda um terceiro de fala arrebatada. [...]. “Esta é minha filhinha Helena, este é seu tia Valdomiro, este é o grande Vicente de Carvalho e este... Martins Fontes!” [...]. Quando conheci, anos passados, Mário Palmério, ele me declarou com toda a sua grande sinceridade: “Se não tivesse havido Valdomiro Silveira, não haveria Guimarães Rosa nem Mário Palmério...” A verdade é que, no século passado, quando não existia a palavra pesquisa, sobretudo para a literatura, meu tio andejava por Serras e Furnas à procura do linguajar caboclo (Ibid., p. 19-20, grifo nosso).

Em meio a escolas poéticas – logo depois viriam os concretistas – Jamil Almansur Haddad era o bardo solitário, único soldado de sua trincheira – assim o veria a crítica literária da época. Quando o conheci, já traduzira sonetos de Petrarca, já vertera Omar Kayam para o português e já nos dera alguns poemas onde se hibridavam suas raízes árabes e sua admiração pelos nossos poetas românticos: Alkamar a Minha Amante, Orações Negras, Orações Roxas e Primavera na Flandres. Tivemos dez anos de uma união feliz ao início, mas depois tumultuada. Foi uma das mais singulares que conheci em minha vida. Um ser apaixonado, mas de tal forma carente de amor, exclusivista, ciumento, competitivo, vivendo a literatura muito mais intensamente que a vida que não cabia em medidas comuns. Encheu a casa a tal ponto de livros que eles se espalharam não somente pela biblioteca mas tomam as salas, dormitórios e até o banheiro. Metido entre eles, Jamil parecia um rato de livrarias. Contagiou meu filho mais moço, Eduardo, com sua paixão de colecionador” (Ibid., p. 71, grifos da autora).

Esses “velhos” Silveiras eram irmãos muito unidos. Havia Agenor, um purista da língua [...]. Havia João, jornalista que militou durante anos no Correio Paulistano e Breno, jovem líder acadêmico das Arcadas. [...]. Meu pai me contava que meu tio Valdomiro mais um amigo chamado Francisco Escobar, iam a São José do Rio Pardo, onde Euclides da Cunha construía uma ponte e escrevia Os Sertões. Lia Euclides, os originais, dentro da pequena cabana que os riopardenses até hoje conservam com amor. [...]. Não conheci muito cedo os meus primos, filhos de tio Valdomiro. Mais tarde, muitos desses primos voltaram-se para a literatura. [...]. Já em outra geração, tenho o filho de Meroveu, Ênio, que, com sua editora Civilização Brasileira, formou no Rio o que eu chamaria de principiado literário [...] (Ibid., p. 20-21).

Então, para além das questões acerca do poder e do que Helena chamou de “visão pessimista da ovelha que não é do mesmo rebanho”, o que Paisagem e Memória demonstra é que “a sociedade, a cultura, torna-se um invólucro no qual são colocados certos eventos, raramente particularizados – processos socioculturais abertos” (CRAPANZANO, 1991, p. 73), e possuidores de uma dinâmica bastante particular.

Fui passar uma temporada no Rio com meus filhos ainda pequenos. Lá, conheci Ribeiro Couto, que se encantou com meu conto “Meu Violino e Débora” e o levou para o suplemento literário de A Manhã. [...]. Retornei vitoriosa para São Paulo. Nessa estadia conhecera Raquel de Queiroz e José Liz do Rego, além de Ribeiro Couto que, na Avenida, me apresentara Cecília Meireles. Aquilo tudo era demais para uma mocinha burguesa e boboca, a se julgar a caminho da glória. Tanto que fiquei sentida com um fato que Raquel nem deve se lembrar. Nesse encontro com os dois escritores, Zé Lins me convidou para ir com eles beber “alguma coisinha” num bar freqüentado por jornalistas, boêmios e artistas, ali na outrora Cinelândia. Raquel cortou logo minha onda: “Zé Lins, a Dinah e a Helena não são moças de beber ‘alguma coisinha’ com a gente!” Pensei que meu chapeuzinho muito engenhoso, [...], fosse o culpado pela diferenciação que a autora de O Quinze fazia (SILVEIRA, 1983, p. 32-33, grifos da autora).

Mas, em Paisagem e Memória, Helena Silveira em grande medida reafirma que a “identidade coletiva precede a memória, determinando aquela o conteúdo desta”, sem desconsiderar, no entanto, que não se pode negligenciar a natureza “dialógica, negocial, conflitual e intertextual quer da identidade, quer da memória”, conforme expôs Peralta (2007, p. 6) em sua análise instalada por escritos de Halbwachs. A narradora autobiógrafa Helena Silveira reaviva, em todo o seu discurso, tanto as bases individuais, quanto as bases sociais de sua memória. Em vista disso, seria absurdo negar, na escrita de Helena, a existência do indivíduo que escreve e inventa.

Assim, é importante dar foco às reflexões foucaultianas (2009, p. 29) que situam, no acaso do discurso, “um jogo de uma identidade que teria a forma da repetição” e, ainda, onde o “princípio do autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu” (grifos do autor). Em outras palavras, vale lembrar que o indivíduo que se propõe a escrever um texto no horizonte através do qual paira a obra possível, retoma por sua conta a função do autor.

Ao eleger e instalar relatos sobre alguns nomes que marcaram “tempos culturais” de uma época – a exemplo de Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Cecília Meireles, Tarsila do Amaral, José Lins do Rego e Graciliano Ramos - Paisagem e Memória dedica-se a ser expoente da articulação de “uma vida pessoal e suas experiências vividas, com a historia real que os viu nascer”, porque é o autor que dá à linguagem de ficção a sua inserção no real (FOUCAULT, 2009, p. 28).

[...] para falar de meu primeiro encontro com Oswald de Andrade, que antecedeu a publicação de “A Humilde Espera”. Tinha Os Condenados do escritor e ficara extremamente seduzida. [...]. Uma tarde, eu vasculhava um sebo no Largo de São Francisco e um balconista aponta: “Aquele é Oswald de Andrade”. Já tinha terminado a leitura do livro, mas o levara comigo para reler no ônibus. Aproximei-me da irreverente criatura com o volume na mão, pedi autógrafo. Oswald, durante toda a vida, não perderia uma característica: a de cultivar a admiração dos moços. Afastou-se comigo, fomos para um café e ele me fez dizer tudo o que pensara de seu romance. Com o cafezinho que veio, bebia as minhas palavras. Quando soube que eu “era filha de Alarico”, mudou um pouco sua atitude que, àquela altura, já tinha tintas donjuanescas. [...]. Não sabia que ali, naquele instante, iniciava-se um dos mais agressivos e também mais afetuosos relacionamentos que tive na vida (SILVEIRA, 1983, p. 53, grifo nosso).

O livrinho teve excelente crítica [...]. Era o fim da guerra. [...]. Tristão de Athayde sagraria “A Humilde Espera” como melhor estréia do ano. [...]. Dulcina de Morais e Odilon de Souza inauguraram temporada, com invulgar sofisticação, no velho e já demolido Teatro Santana. Encenavam “César e Cleópatra”, tradução de Miroel Silveira. [...]. Noite de estréia. Edgar Cavalheiro lá me conduziria [...]. E eis que Edgar se alvoroça: justamente ao meu lado, estava um homem alto, magro, escuro, feio, com lentes grossas encobrindo os olhos. [...]. E eu, um pouco espantada com aquela efusão; o espanto logo se dissipou ao meu amigo apresentar: “Este é Mário de Andrade!”; “Já tenho seu livrinho em mãos. Vou lê-lo e comentá-lo, qualquer dia destes.” [...]. Depois do espetáculo, nos camarins, ainda falaria com Mário de Andrade. Ou por outra: ouviria-o falar. Aquele encontro ficou-me na memória. Carreguei Mário para casa, comigo, dentro da cabeça – é claro! – como fazem os novatos com seus ídolos (Ibidem, p. 40-41).

Lembro-me do encantamento que me tomou quando me apresentaram Tarsila do Amaral. Ela ainda era uma mulher extremamente bonita e charmosa. Assumira diversas ligações amorosas e fez curvar-se ante suas atitudes de independência até uma sociedade pré-conceituosa como a de nosso tempo (Ibid., p. 44, grifo nosso).

Um dia, na Biblioteca Municipal, ouvi uma conferência de Cecília Meireles. Comprei os livros dela e, vez por outra, trocávamos cartas. Um dia lhe disse que, em pequena, quando meu pai me dava livros e esquecia-se da dedicatória, eu tomava seu lugar e escrevia a mim própria. [...]. A grande Cecília nunca se esqueceu da historieta e, desde então, fazia-me suas dedicatórias relembrando os tatibitates de minha infância. Esse fato, por si só, mostra que a grande Cecília nunca foi aquela mulher distante, marmórea, que muitos queriam ver nela (Idib., p. 39, grifo nosso).

Antes da saída do meu primeiro livro, fui, novamente ao Rio, com meus filhos. Aí, viveria uma experiência maravilhosa. Estava na Livraria José Olympio quando José Lins do Rego me apresentaria Graciliano Ramos. Graciliano fazia do fundo da loja uma espécie de escritório cativo. [...]. Quando cheguei, deveriam ser umas duas horas da tarde. Quando saímos, eram seis e meia e o escritor me pôs no “lotação” que me conduziria a Copacabana. Levara comigo, autografado, seu livro “Vidas Secas”, e deixara com o romancista uma porção de recortes com contos meus (Ibid., p. 38, grifos nossos).

Helena Silveira no que escreve e no que não escreve, naquilo que desenha e no como desenha, mesmo que não pareça intencional (ou pareça!), faz com que seu “rascunho provisório” seja o esboço de uma obra. A função do autor, em Paisagem e Memória, é uma recepção de sua época e uma modificação da mesma (FOUCAULT, 2009). “Custava a se entrar em sintonia com a efervescência alegre dos salões dos Martins onde se bebia o melhor vinho e se comia o melhor bobó de camarão. A editora paria mais e mais livros, mas também comemorava os livros nascidos das colegas” (SILVEIRA, 1983, p. 59). São os “recortes de mundo”, cristalizados por Helena, que perfilaram a sua obra.

Então, seja por vivências com Caymmi, Nelson Rodrigues ou Jorge Amado e, ainda, com Érico Veríssimo, Vinícius de Moraes ou com Pixinguinha, o que há são paisagens e memórias de uma “história de vida que não é uma cadeia atomística de acontecimentos [...], mas um processo que tem o pano de fundo de uma estrutura de significação biográfica” (ROSENTHAL, 1996, p. 195).

Em casa de José e Edite de Barros Martins, na Vila Mariana, eu conheceria muitos escritores e artistas. Estou lembrada de longas noites adentrando a madrugada, Almirante nos levando por jardins e salões com uma canção velhíssima de um dos mais antigos carnavais [...]. Uma voz cantava mais forte do que as outras: era a do contista policial bissexto e grande advogado, Luís Lopes Coelho. Ali, também encontrei Dorival Caymmi que, em resposta a uma crônica minhas, pôs em seu livro esta dedicatória: “Para Helena Silveira que desejou uma ‘bolsa para a Bahia’ e foi brilhar em Paris”. Jorge Amado era um dos freqüentadores da casa, mas eu o conheci quando mantinha um programa na televisão na antiqüíssima TV Paulista [...]. Eu amava, particularmente, “Terras do Sem-fim”. [...] Retornando à casa do editor amigo: ali estariam em quase todas as reuniões Clóvis Graciano, Paulo Mendes de Almeida, Ademir Martins, Di Cavalcanti e muita gente de nossa musica popular [...]. Ali se comemorou muitas edições de Guilherme de Almeida [...]. Lá, íamos cear com Érico Veríssimo depois das tardes de autógrafos na Livraria Teixeira. Foi na casa desse amigo que conheci Sérgio Buarque de Holanda e Maria Amélia, que bati os melhores papos com Sérgio Milliet [...]. Vinícius de Moraes punha-se ao violão. Uma roda se formava em torno: Edgar Cavalheiro, Mário da Silva Brito, Antônio Rangel Bandeira, Nelson Rodrigues, Almiro Rolmes Barbosa e Elena, Lourival Gomes Machado. Fernando de Barros que era, então, mais cosmeticologista do que cineasta, vinha sempre com uma mulher bonita que tanto podia ser Marisa Prado como Tônia Carreiro. Sílvio Caldas transformava as noites em serestas. Pixinguinha chegava com a mulher. Jacob do Bandolim comparecia. E na platéia estavam Marques Rebelo, Guilherme Figueiredo, Oswald de Andrade, Franklin de Oliveira, Paulo Bonfim, Paul Silvestre, Luiz Martins, Inezita Barroso, Raimundo de Menezes, Rui Bloem, Sérgio Cardoso [...]. Poetas da geração de 45, como Domingos Carvalho da Silva ou o Ledo Ivo, aportam em Vila Mariana. (Ibid., p. 57-59, grifos nossos)

Em Paisagem e Memória, explicita-se que “las autobiografias no nos proporcionan la totalidad de lo que há sido a vida de alguien, pero que debe admitir que sí nos pueden entregar lo más importante de ella” (PIÑA, 1991, p. 98). E, de repente, tanto o mais importante, quanto o secundário de uma obra, passam a ser o poder mágico das palavras pelas quais se tem o informativo, o testemunho, o registro de uma vida aos olhos de alguém que se propôs a narrar de si para outros, como é o caso das autobiografias.

Nessa via, Helena reiterou autobiograficamente o que, certa feita, disse-lhe seu segundo marido, que ao contrário do primeiro (Alcino Teixeira Leite[18]), fora considerado como o seu grande companheiro: “Jamil Almansur Haddad me disse que eu acreditava no poder mágico das palavras. Creio que é certo. Vivia as palavras. Minha identidade era-me dada com palavras”. E Helena explica: “O que mais me encantava era ser vária, posta que cada pessoa me contava a mim mesma de modo diferente, com palavras que me faziam, me construíam” (SILVEIRA, 1983, p. 13).

De certa forma, tais dados confirmam, respondendo ao questionamento de Rosenthal (1996, p. 193) que, assim como tantas outras formas de expressão pela grafia, as autobiografias escritas podem apresentar uma “distorção” do que foram os fatos objetivos, pois em se tratando de “tapar buracos para encontrar o mundo real por trás das palavras”, há de se indagar sobre o status da memória do autobiógrafo. “Mas houve um momento em que meu trabalho era tão intensivo e minha vida tão cheia de preocupações que eu me sentia uma verdadeira maquina de produzir palavras”. E, assim, “a vida passava pelos olhos, pelos ouvidos, por todos os sentidos e virava letra de forma depois do bater as teclas de minha Olivetti” (SILVEIRA, 1983, p. 206-207).

Mas, vivendo em um ritmo de poder e de palavras, Paisagem e Memória evidencia nitidamente que Helena Silveira, ao enredar o outro e a si mesma pelas letras, faz da “memória coletiva o locus de ancoragem da identidade do grupo, assegurando a sua continuidade no tempo e no espaço” (HALBWACHS, 1968 apud PERALTA, 2007, p. 6). Com efeito, as pistas de um exercício de memória, pelas narrativas, estão dispersos ao longo do discurso que constitui a autobiografia de Helena.

Em casa, eu e Jamil escrevíamos sem parar. [...]. Lembro-me que escrevi em minha coluna ‘Paisagem e Memória’, ‘Escritor, esse intervalo’: “o homem tem que escrever rapidamente porque a vida é uma condução que está sempre partindo. Amanheceu e já é ontem e o escrito fragmentou-se para espelhar o acontecer. [...]. Se demorar na máquina de escrever, encontrará vazio o copo no bar e a boca da amada emurchecida porque os minutos sem amor são fatais e envelhecem. Então é preciso dizer depressa aos homens o que são os homens e captar o minuto que corre para não ser roubado do instante. [...]. O escritor escamoteia o tempo de si próprio para seus malabarismos. Perde sua substância no afã de traduzir para o papel o dia-a-dia. [...]. Todavia, se o escritor não sentir no peito a bomba que cai nalgum lugar do mundo, então, onde achará as palavras mágicas, o verbo cabalístico da interpretação? Se ele conta o caos, ele é o caos. [...]. E esse bailado com as palavras e os sentimentos cansa tanto que, às vezes, quando põe de lado a pena, só lhe resta, justo, o tempo de morrer...” (SILVEIRA, 1983, p. 205-206).

Assim, numa Paisagem e Memória de “linhas que foram feitas após leituras, meditação e conversas feitas com o Dr. Mário Yahn”, com quem Helena fez sessões de psicanálise (além das leituras de especialistas da área aos quais recorreu), esta autora, por sua vez, concluiu em sua obra: “Minha vida tinha chegado em um momento crucial. Depois da vida vivida, dos cálices bebidos até o fim do fel, percebi como andava desorientada e perdida ao supor que agia, no momento, da melhor forma” (Ibid., p. 210).

Convém expor que Helena Silveira, “ao discutir suas próprias lembranças com seu psicanalista” – citado pontualmente durante toda a sua autonarrativa – cria uma obra que, na verdade, tende a se consolidar como “o resultado de uma forma de autobiografia que confronta os grandes temas do tempo e da classe, de maneira intensamente íntima” (THOMPSON, 2002, p. 199). “Comecei eu própria a ler sobre psicanálise. [...]. Em seus capítulos sobre a psicologia feminina, [...] Karen Horney refuta o pensamento de Freud, e quando se trata de mulher, sublinha o valor das influências sociais” (SILVEIRA, 1983, p. 209-210).

E é assim que Helena delineou o que Thompson (2002, p. 199) denominou como sendo a “fuga musical sobre a natureza da memória”, já que até mesmo a “história de vida franca e honesta contém seus silêncios e evasões peculiares”. E, com este fim, os relatos de Helena sempre se localizam entre paisagens e memórias de uma narrativa que, de repente, pode se ver “sem paisagens” ou com “paisagens construídas”.

Essa viagem foi feita em 1955 e, nestas memórias, estamos longe dela. [...]. Enquanto eu me extasiava ante montanhas, cores, nuanças de amanhecer e anoitecer, Jamil voltava as costas às janelas e escrevia. Eu brincava: “Não posso considerar poeta a quem dá as costas ao mediterrâneo”. “Sou um poeta sem paisagem. Você ainda não descobriu isto?” Sim. As paisagens, Jamil as construía. Ali, na proximidade de nahr el Kalb (Rio do Cão), ele pensava no Bósforo. Colhi um papel no chão. [...]. Lembro-me de alguns versos: “Poeta, as tuas pipilas serenas tem um brilho perdido de maldito fósforo. Sou pobre. Não tenho casa própria. Sou apenas proprietário das paisagens do Bósforo” (Ibidem, p. 107).

Então, a jornalista e escritora Helena Silveira - a mãe do sensível Eduardo, que se submetera a tratamentos psiquiátricos, e de Luiz Alcino, o arquiteto que se casara e lhe dera “netos maravilhosos”, como também a divorciada de dois relacionamentos que “deixaram profundas marcas” e, ainda, a parente e amigas de uma “elite cultural de época” -, fez-se autora-mulher de sua autobiografia Paisagem e Memória. Aliás, é imprescindível dizer que Helena se construiu como “alguém que trabalhou” e, aos seus olhos, em certa medida viveu diferenciadamente de muitas mulheres que lhe foram contemporâneas. Por isso, ao longo das suas narrativas, menos se sabe dos seus filhos e casamentos, quando mais se sabe do “testemunho de uma época e de uma cultura”.

Aliás, a leitura, a escrita e a cultura, em si, já se apresentaram exaltadas desde o momento em que Helena Silveira narra fatos de sua primeira maternidade que, conforme seu relato, a realizou plenamente. “Lembro-me de que se comemorava o centenário de Álvares de Azevedo. Fiquei lendo uma biografia do poeta até que chegaram as dores. Prossegui na leitura, ainda com elas. Deixei minha leitura para ir para o hospital” (SILVEIRA, 1983, p. 26).

O trabalho a que Paisagem e Memória se dedica, está para além de uma vida, pois situa-se como objeto proposital de “testemunho” que, em parte, enreda-se numa memória pessoal e, por outra via, configura-se como memória histórica e coletiva. Porém, neste caso, há de se prever que “para que nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes nos apresentem seus testemunhos”. Também “é preciso que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e existam muitos pontos de contato entre uma e outra para que a lembrança que no faz recordar venha a ser reconstruída sobre uma base comum” (HALBWACHS, 2006, p. 39). Em se tratando da memória de Helena, é certo que a sua construção individual-social do passado encerrou, sempre, “relações de poder e de dominação”. Contudo, “deve-se levar em conta que há uma pluralidade de atores e de forças que contribuem para construção de tais relações” (PERALTA, 2007, p. 15).

A consolidação testemunhal em esfera pública, por Paisagem e Memória, expõe a construção da memória enquanto resultado de uma negociação de narrativas e discursos que expressam interesses dissonantes, “num processo dinâmico que envolve um debate constante entre a criação, a preservação, a erradicação e a consensualização de memórias” (Ibidem, p. 14). Nesse campo, não se pode, inclusive, desconsiderar que o autor e o leitor podem ser, até certo ponto, unidos pelo fato de que há continuamente um lugar de (re)invenção dentro de cada discurso que se propõe a escrever, ler e interpretar. Por isso, podem existir visões conflituais sobre uma mesma obra, já que indivíduos (escritores e leitores) diferentes possuem versões sócio-histórico-culturais diferenciadas das “mesmas coisas”.

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SILVEIRA, Helena. Paisagem e memória. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1983.

THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.



[1] “O gênero biográfico surgiu no século XVIlI, propiciado pela expansão e afirmação dos direitos individuais, que o ideário da Revolução Francesa tão bem expressou. As Conjissoes de Rousseau, escritas entre 1764 e 1770, são um bom exemplo. [...].O gênero biográfico se fez acompanhar da revalorização da História Oral, como fonte/método/técnica de pesquisa, bem como dos arquivos pessoais - autobiografias e toda sorte de documentos pessoais, como diários, memórias, correspondências etc. -, como preciosa fonte histórica” (PEREIRA, 2000, p. 17).

[2] Conforme Calligaris (1998 apud PEREIRA, 2000, p. 17), “o escrito autobiográfico pressupõe uma cultura em que o indivíduo se coloque acima da comunidade a que pertence, e conceba sua vida como urna aventura a ser inventada, e não como um destino pré-determinado a ser cumprido”. Mas, por vertente, Queiroz (1998), destaca que “uma autobiografia consiste na narrativa da própria existência e nela foi o próprio narrador quem se dispôs a narrar sua vida, deu a ela o encaminhamento que melhor lhe pareceu e deteve o controle sobre os meios de registro” (Ibidem, p. 17-18).

[3] “A história de vida, por sua vez, é o relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, com a intermediação de um pesquisador. É um trabalho coletivo de um narrador-sujeito e de um intérprete. Já a biografia se define como a história de um indivíduo redigida por outro. Existe, aqui, a dupla intermediação que a aproxima da história de vida, consubstanciada na presença do pesquisador e no relato escrito que se segue” (Ibid., p. 18).

[4] “Narrar histórias é sempre a arte de as continuar contando e esta se perde quando as histórias já não são mais retidas. Perde-se porque não se tece e fia quando elas são escutadas. Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta, tanto mais fundo se grava nele a coisa escutada. No momento em que o ritmo do trabalho o capturou, ele escuta as histórias de maneira que o dom de narrá-las lhe advém espontaneamente. Assim, portanto, está contida a rede em que se assenta o dom de narrar. Hoje em dia ela se desfaz em todas as extremidades, depois de ter sido atada há milênios no âmbito das mais antigas formas de trabalho artesanal. A narrativa, da maneira como prospera longamente no círculo do trabalho artesanal - agrícola, marítimo e depois urbano – é ela própria algo parecido a uma forma artesanal de comunicação. Não pretende transmitir puro ‘em si’ da coisa, como uma informação ou um relatório. Mergulha a coisa na vida de quem relata, a fim de extrai-la outra vez dela. E assim que adere à narrativa a marca de quem narra, como à tigela de barro a marca das mãos do oleiro. [...]. Esta arte artesanal, a narração, o próprio Leskow a sentia, como um trabalho de artesão. ‘A arte de escrever, consta numa de suas cartas, não é para mim nenhuma arte livre, mas um trabalho de artesão’.” (BENJAMIN, 1983, p. 62-63, grifo nosso).

[5] Considerando a narrativa como modalidade discursiva que abarca, principalmente, a exposição de personagens, tempos e espaços demarcados, utilizo o termo autonarrativa como tentativa de denotar uma estrutura de sentidos que está para além do uso de um “eu biográfico” individual.

[6] “A ilusão de que a etnografia é uma questão de dispor fatos estranhos e irregulares em categorias familiares e ordenadas, foi demolida há muitos anos. O que ela é, entretanto, não está muito claro. Que talvez a etnografia seja uma espécie de escrita, um colocar as coisas o papel, é algo que tem ocorrido, vez por outra, aos que empenham em produzi-la, assumi-la, ou ambas. [...]. Os etnógrafos precisam convencer-nos não apenas de que ‘estiveram lá’, mas ainda de que teriam visto o que viram, sentido o que sentiram e concluído o que concluíram” (GEERTZ, 2002, p. 11/29).

[7] De acordo com Bourdieu (1996, p. 71-72), o uso do termo “trajetória descreve a serie de posições sucessivamente ocupadas pelo mesmo escritor em estados sucessivos do campo literário”, ou seja, “é no interior de um estado determinado do campo, definido por um certo estado do espaço de possíveis, em função da posição mais ou menos singular que ele ocupa, e que ele avalia diferenciadamente conforme as disposições que deve à sua origem social, que o escritor se orienta em direção a tais ou quais possibilidades oferecidas [...]”.

[8] A memória coletiva, conforme Halbwachs (2006, p. 30), é um esquema derivado do fato de que “nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem”.

[9] A memória social, analisada por Olick e Robins (1998), é considerada por Peralta (2007, p. 4) como sendo “uma rubrica geral de investigação que tem por objecto a análise das diferentes formas pelas quais somos moldados pelo passado, conscientemente e inconscientemente, na esfera pública e na esfera privada, de forma material e comunicativa, e de modo consensual e conflitual”.

[10] “É na contracorrente dessa tradição de desvalorização da memória, nas margens de uma crítica da imaginação, que se deve proceder a uma dissociação da imaginação e da memória, levando essa operação tão longe quanto possível. Sua idéia diretriz é a diferença, que podemos chamar de eidética, entre dois objetivos, duas intencionalidades: uma, da imaginação, voltada para o fantástico, a ficção, o irreal, o possível, o utópico; a outra, a da memória, voltada para a realidade anterior, a anterioridade que constitui a marca temporal por excelência da ‘coisa lembrada’, do ‘lembrado’ como tal” (p. 25-26).

[11] Para Crapanzano (1991, p. 71), “a ilusão bibliográfica é uma necessidade social. Imagine-se a confusão que seria provocada no sistema legal se tivéssemos que colocar devidamente entre aspas as testemunhas e as pessoas de que falam em seus testemunhos! Nesse caso teríamos de reconhecê-los como personagens em desempenhos dramáticos altamente codificados, tomados como meras representações do que ocorreu. Em vez de julgá-las em termos de sua ‘veracidade’, como costumamos fazer, teríamos que julgá-las quanto à sua capacidade persuasiva. Parece, contudo, que as aspas tem que ser reconhecidas em qualquer esforço que se pretenda científico, mesmo que esse reconhecimento venha a subverter sua pretensão científica tradicional”.

[12] Cf. Lacerda (2002), Paisagem sobre Memória Feminina e Literária.

[13] Cf. Bosi (2006), Memória e Sociedade: lembranças de velhos.

[14] Na mitologia grega, Hamadríades são ninfas que nascem com as árvores, devendo protegê-las, e com as quais partilham o destino.

[15] “A família intelectual que fazia do meu pai, viúvo moço, espécie de ovelha desgarrada do rebanho, trancado entre os seus livros, dentro de sua imensa cultura. Redator do Correio Paulistano, incumbira-se de política internacional. E seus artigos foram elogiados pelos maiores estadistas da época, durante a primeira grande guerra. O pai que defini em minha longa psicanálise feita com o Dr. Maria Yahn, o saudoso e extraordinário Dr. Mário Yahn, como um pai sem chinelas, sem roupão de banho. [...]. O grande erudito Alarico Silveira, na fazenda, quando de esporádicas visitas, punha-me ao colo, levava-me ao terraço espiando a noite estrelada. E ali, diante da luminosidade do céu, dava-me noções de astronomia” (SILVEIRA, 1983, p. 14).

[16] “Já tinha muitos contos fechados nas gavetas, quando Dinah começou sua carreira. Admirei o desassombro com que entrou para o mundo literário. Seu livro Floradas na Serra abriu-lhe logo as portas da notoriedade” (Ibid., p. 32).

[17] “Raquel de Queiroz escreveria, em sua crônica da revista O Cruzeiro, um texto como nome ‘Alarico’. [...]. E Raquel passa a falar de seu relacionamento com o meu pai, dando um precioso testemunho: ‘Nunca esqueço – foi logo após a publicação de meu livro – as minhas entrevistas com Alarico Silveira, já então dedicado a todo pano à colheita de brasileirismos para o seu dicionário. Com meu O Quinze todo rabiscado de notas numa das mãos, o lápis na outra, ele ia lendo os textos anotados e pedindo explicações, palavra por palavra, de todo o regionalismo, de todo o coloquialismo que o intrigara, e dos quais eu, meio encabulada, lhe dava as traduções. [...]. Desde então ficamos amigos. [...]. Nacionalismo fecundo e útil foi, sim, o de um Alarico Silveira. O homem que foi buscar na língua falado do povo, nas suas histórias, nos seus romanceiros, nas suas lendas e tradições, o tema para dedicação de uma vida inteira de estudos e pesquisas (Ibid., p. 18).

[18] “Eram épocas em que a vida corria depressa. Ainda não havia assinado o desquite, Alcino entrou-me casa adentro espantado com A Humilde Espera nas mãos. Estava um pouco espantado: “Li um rodapé no O Estado de S. Paulo sobre seu livro. Você me põe uma dedicatória?” [...]. Tão diverso daquele marido prepotente que me anulara, que via em mim até um pobre de espírito! Achei uma graça enorme quando ele se desculpou por, em treze anos de casado, “não ter avaliado a sua inteligência!” E insistia: “Me põe uma dedicatória?” Há doces momentos de vinganças, vinganças que não fazem mal a ninguém, para uma pobre moça que fora tão humilhada, tão humilhada que a humilhação estava até no título de seu livro – foi o que me ocorreu naquele instante, como me ocorreu dizer-lhe, puxando o volume para minhas mãos: “Claro que eu escreverei uma dedicatória. Se não fosse você, eu não teria escrito este livro. De certa forma, ele lhe pertence!” (SILVEIRA, 1983, p. 41, grifos da autora).

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