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segunda-feira, 29 de junho de 2009



O banheiro de portas abertas: entre o público e o privado

Katianne de S.Almeida

“O banheiro feminino é um santuário onde segredos profundos e obscuros são revelados...”

(Claire St. Jones)

A pesquisa realizou-se no banheiro feminino do primeiro piso no Goiânia Shopping, localizado no Setor Bueno, cidade de Goiânia – estado de Goiás. A observação ocorreu durante cinco dias – do dia 19 a 23 de junho - corridos tendo dez horas de presença no local.

A imagem abaixo é um esboço do banheiro com os diversos objetos que o compõe. O banheiro é dividido em dois espaços, o primeiro composto por dois espelhos, sendo um para a visualização do corpo inteiro e o outro para visualização da cintura para cima, os dois são bastante grandes. Além dos espelhos, no primeiro espaço temos três sofás de couro e três jarros de plantas naturais. No segundo espaço temos nove espelhos com os respectivos lavatórios alinhados à parede, uma lixeira grande de inox e nove sanitários com suas respectivas portas. Dentro dos sanitários temos uma prateleira de vidro para se colocar objetos como bolsas e sacolas de compras, etc.










A observação foi feita a partir do que eu percebia estando no primeiro espaço do banheiro, sempre fiquei sentada em um dos sofás, na maioria das vezes ficava no sofá perto do espelho e poucas vezes no sofá perto dos jarros de plantas. Estando no sofá a minha presença sempre fora percebida por aquelas que adentravam ao banheiro, o que algumas vezes me causava certo desconforto pelo olhar das funcionárias da limpeza que não compreendiam a minha estada no banheiro com grande constância e permanência, pois eu ficava cerca de duas horas intermitentes dentro do banheiro.

Mesmo eu sendo percebida acredito que não causei constrangimento às freqüentadoras, pois notei que os comportamentos, as falas, as interações não foram afetadas pela minha presença. Eu estava no sofá com um livro e o caderno de anotações no colo, parecia que era uma estudante e que não estava reparando nas freqüentadoras. Algumas vezes, senti que meu olhar incomodava, desta forma, evitava ficar encarando. Uma das coisas que notei neste exercício de observação foi que as pessoas não gostam que as encarem, além disso, dei-me conta que quando eu era encarada não gostava também, pois me sentia fragilizada diante o olhar penetrador.

Outro fator que me fez “camuflar” mais ao ambiente e não ser interrogada, pela minha constante e demorada presença no banheiro, foi o fato de estar vestida de acordo com os padrões do shopping, ou seja, roupas sociais ou esporte fino.

A observação ocorreu de sexta-feira a terça-feira, o que me fez notar que as freqüentadoras diferenciavam-se quanto ao dia e também quanto ao horário. No primeiro dia de observação, numa sexta-feira, a partir das 14 horas a maioria das freqüentadoras eram as funcionárias das lojas e as outras eram mulheres que tinham ido realizar comprar, pois sempre estavam com suas sacolas, as mesmas eram ostentadas como troféus por suas portadoras. Aos sábados e domingos as freqüentadoras dividiam-se em adolescentes, funcionárias das lojas, mulheres que faziam compras ou estavam a passeio. Na segunda e terça-feira a maioria das freqüentadoras do banheiro observado eram as funcionárias das lojas.

Poucas mulheres interagiram comigo, na primeira vez foi perguntando as horas, na segunda vez foi uma adolescente que conversou comigo sobre formas de relação entre mãe e filha – que será relatada neste texto – uma terceira interação ocorreu quando uma funcionária da limpeza me perguntou “se eu ficava sempre estudando” e outra vez quando eu senti a necessidade de perguntar a uma freqüentadora sobre o seu cabelo, esta demonstrou um imaginário do mundo feminino que achei interessante – em outro momento do texto será descrito.

Inicialmente atentei-me ao fato do banheiro não ser apenas um local que servia para satisfazer as necessidades biológicas, o banheiro não era um espaço apenas utilitário, mas um lugar em que se compartilham algumas normas de práticas comportamentais que se acredita serem da “essência” do mundo feminino. Além do mais, o banheiro também é um locus onde se trabalha o imaginário do corpo da mulher, assim como, a maneira de se portar socialmente.

Pelas falas também observei que o banheiro é mais um dos espaços sociais em que se fortalece no imaginário feminino as ditas “verdades” sobre seu corpo, sobre sua afetividade, sobre sua sexualidade. Por exemplo, escutei diversos comentários sobre casamento, sobre abdicação da mulher quanto aos afazeres de seus namorados, maridos e/ou companheiros, a questão da associação da prática do cuidar, a magreza como padrão do belo assim como o cabelo liso, ou seja, as regras e valores sociais que se associam ao que é “feminino”.

Antes, porém, quando adentrei ao banheiro senti que, talvez, não seria um bom espaço para se perceber questões sobre gênero, sexualidade e poder. No princípio, acreditei que tinha feito uma escolha errada, pois imaginei que nada poderia ocorrer ali. Felizmente, essas percepções iniciais foram uma ilusão. Quando comecei a desnaturalizar o espaço percebi que o banheiro também era um local em que as pessoas introduziam, reproduziam e fortaleciam algumas regras sociais relativas a gênero e sexualidade.

Nos momentos em que estavam mães e filhas juntas havia a demonstração das infinitas repetições que a “norma” estabelece como “ação esperada de uma mulher”. As mães ensinavam as suas filhas práticas de limpeza, o fascínio pelo espelho – conseqüentemente pelo corpo – o valor de estar vestindo uma roupa adequada e que deveria comporta-se como uma mocinha. Valorizando, portanto, um comportamento que não poderia sofrer dobras, ou amarrotar, quer dizer desvirtuar-se do que é padrão.

Em um dos momentos que interagi com uma das mulheres que freqüentavam o banheiro percebi que desvirtuar-se de um “padrão” de comportamento feminino é sinônimo de sofrimento, pois o poder que a norma exerce quanto às práticas do ser é intenso. A interação deveu-se a necessidade de eu saber qual era o tipo de química que ela tinha usado em seu cabelo. Ela disse que não gostava de ir ao salão de beleza, pois achava uma perca de tempo, além disso, também não gostava de estar na moda, digo isso, pois seus cabelos pareciam estar com mechas californianas e ao relacionar estes dois elementos que esta mulher não gostava – salão e moda – ao final ela disse: “Eu acho que eu nunca vou ser o que minha mãe gostaria que eu fosse” (SIC).

Nesta breve fala percebi a existência de relações de forças que constroem a “verdade”, ou a maneira “unilateral” de performance da mulher. Dentro do discurso desta mulher há uma distância entre suas atitudes e a expectativa de práticas que deveria desempenhar de acordo com sua mãe. Desta forma, podemos perceber que a idéia de corpo, de mulher, de valores, de práticas é uma construção social.

Alguns dizem que o cabelo é o “calcanhar de Aquiles” de uma mulher. Na observação no banheiro notei que entre aquilo que as mulheres mais observavam em seus corpos era o cabelo, depois a bunda e por fim a roupa.

Havia, enfim, um ritual realizado pela maioria das mulheres que adentravam ao banheiro. O ritual começava com um olhar no espelho grande, localizado no primeiro espaço do banheiro, depois passava-se ao sanitário – para se satisfazer as necessidades biológicas – e voltava-se aos espelhos que ficavam junto as pias. Neste lugar alguns longos minutos eram dedicados ao cabelo, às vezes, utilizavam pentes, ou a água, ou a mão, ou tiravam de suas bolsas outros objetos que podiam ajustar o seu cabelo a um tipo ideal já pré-estabelecido culturalmente. A maioria das mulheres possuía cabelos lisos, ou melhor, cabelos alisados por processos químicos. Demonstrando mais uma vez como o poder de ajuste ao que é considerado belo exerce sobre as pessoas.

A opressão da beleza, atualmente, sobre os cabelos é algo impressionante, muitas vezes. Em uma das conversas ouvidas, entre duas amigas no banheiro, pude perceber o descontentamento de uma quando alisou seu cabelo. “Meu cabelo era cacheado, pesado e bonito, mas mesmo assim eu fiz progressiva e hoje sou viciada no secador”.

O cabelo é uma das partes do corpo mais valorizado pelas mulheres quando estão no banheiro. Ás vezes ele tem uma característica étnica que não é bem quista por suas portadoras. No primeiro dia vi uma mulher negra que começou a mexer em seus cabelos inicialmente na pia, seu cabelo era curto, crespo, mas foi alisado e tinha algumas mechas. Ela molhava as mãos e passava no cabelo parecendo que estava travando uma “luta” de ajustamento de conduta com seu próprio corpo, depois passou para os espelhos no primeiro espaço do banheiro e começou a remexer nos cabelos e, finalmente, decidiu que eles para estarem ajustados deveriam ficar presos.

Além da atenção demasiada dada ao cabelo, outro local do corpo também demonstrava profundo interesse pelas freqüentadoras do banheiro: a bunda. Quanto a esta observação, pensei que talvez exista uma necessidade entre as mulheres, nos banheiros, em ver suas bundas como símbolo de sua feminilidade. Isto pelo fato da bunda ser um construto da sociedade brasileira que torna a mulher mais sedutora, mais sensual e algumas vezes até mesmo “mais mulher”, sendo chamada de mulherão, pelo formato de sua bunda.

Outras partes do corpo a se reparar no banheiro era o rosto, algumas freqüentadoras ficavam alguns minutos olhando seus detalhes faciais, seus poros. Acredito que fiscalizando os pequenos sinais de envelhecimento, como se este envelhecimento fosse algo fora do normal, o que se deve evitar a todo custo. Algumas freqüentadoras traziam em suas bolsas, suas parafernálias contendo cremes, batons, maquiagens, etc.; esses em alguns momentos eram considerados troféus, pois eram considerados símbolos de um poder transformativo; no entanto, eram poucas que retocavam a maquiagem.

Sem dúvida alguma o que mais faz sucesso no banheiro não são os vasos sanitários, são, na verdade, os majestosos espelhos. Os espelhos são objetos divinizados pelas freqüentadoras. Cada uma que entrava no banheiro tinha a necessidade de olhar para pelo menos um dos espelhos que se encontrava disponível. Era como um ritual sagrado olhar-se no espelho, às vezes, podia-se entrar no banheiro para não fazer necessidades fisiológicas, mas tinha que se olhar no espelho, não vi uma mulher que não se olhou no espelho. Talvez, como era um ritual, se assim não o fizesse poderia ser censurada ou punida. O encantamento pelos espelhos talvez seja pelo fato de vivermos num mundo em que se dá muita importância a imagem, ao individualismo –, “pois narciso acha feio o que não é espelho”.

Durante esses cinco dias de observação pude ter indícios para se desbancar um dos mitos do comportamento feminino, o qual coloca como fato as mulheres “sempre” irem em “bando” ao banheiro. Durante a minha socialização como mulher, a questão de ir ao banheiro acompanhada por outras mulheres era de extrema importância, pois o banheiro era um espaço perigoso e que eu como mulher não poderia desafiar sozinha o que era perigoso, ou então, não poderia ir sozinha, pois estava designado a mulher nunca ir sozinha a lugares público, mesmo o banheiro sendo um espaço privado.

Durante horas de observação percebi que as mulheres, muitas vezes, iam sozinhas ao banheiro e não havia qualquer censura por parte dos olhares ou falas de outras por estas estarem sozinhas. Neste caso, o banheiro serviu de locus da percepção de transformações na contemporaneidade, em que as mulheres começam a ser vistas não como um ser que “precise” estar “sempre” amparada ou vigiada, porque é frágil e inocente.

Dentre os dias pesquisados o domingo foi o dia de uso mais versátil do banheiro pelas freqüentadoras. As que mais apareciam no banheiro eram as adolescentes. Elas usavam o banheiro para tirar suas fotos “estilosas”, provavelmente para colocá-las no orkut, site de relacionamento mais famoso e usado pela juventude. Foi interessante ver as adolescentes em conjunto cultuando suas imagens, seus corpos, suas roupas. O banheiro para elas era um santuário em que se cultuavam suas imagens, suas performances e representações.

Estava implícito o culto a beleza ditada pelos padrões das regras atuais, como a magreza, a pele branca, o cabelo liso e vestimentas de acordo com a tendência outono – inverno. A maioria estava de botas, ou de meias, ou de lencinhos no pescoço, ou roupas muito justas que exalavam sensualidade e provocação. Além do culto ao corpo, em suas falas estava a necessidade de repetição das normas heteronormativas, como se o mundo feminino resumisse a preocupações quanto a relacionamento afetivo-amoroso, a jóias, a cabelo, ao tipo de roupa, a compras, a cartões de crédito, etc.

No início deste texto comentei que uma adolescente interagiu comigo sobre relacionamento entre gerações de mulheres: mãe e filha. Ela iniciou a interação perguntando-me se eu tinha filhos e se era casada, disse a ela que felizmente não. Ela muito assustada perguntou-me se eu “nunca”, com um olhar de horror, teria filhos ou casaria, para acalmá-la, disse que pensaria mais nisso no futuro. Então, ela disse-me se eu tiver filhos para ser mais aberto com eles, pois uma relação fechada não faz bem aos filhos. Retruquei dizendo que liberdade demais também não é bom para os filhos. Ela concordou, mas finalizou a conversa dizendo que toda mãe deveria estar mais aberta ao diálogo com suas filhas. O que será que a reprimia tanto?

Em um dos dias de observação, precisamente no sábado, percebi uma iniciação de uma mulher no mundo do compromisso de relacionamento heterossexual. Entraram duas amigas que conversavam sobre questões diversas e ao final uma delas viu que a outra estava usando uma aliança, então perguntou se ela havia se casado, a outra em tom de repressão disse que não, pois estava noiva, e ainda deixou bem claro que estava seguindo os “costumes”, dizendo a amiga que primeiro é preciso ser noiva e depois ser esposa. O desfecho desta iniciação foi quando a “amiga noiva” mostrou a outra como é a posição da aliança quando se está noiva e quando se está casada, infelizmente não consegui identificar, portanto, não aprendi, ainda não fui socializada quanto a este assunto.

Em questões relativas a sexualidade percebi alguns discursos repressores. Por exemplo, quando duas amigas, com uniformes de colégio particular, entraram no banheiro comentando sobre uma de suas colegas que descobriram ser lésbica, na verdade, elas entraram falando em tom de desdenho que sabiam dos casos da menina “sapatão” da escola. Pode-se ver neste caso, quando se retira do armário a sexualidade, àquela que está fora da norma, está-se propenso a recriminações em todas as ordens, seja moral e até mesmo física, dependendo do grau de intolerância do grupo a que se está exposto.

Foi interessante também observar, de maneira crítica agora, a relação entre mães e filhos no banheiro. As mães socializam suas filhas no banheiro quanto a “necessidade” de se “ajeitarem” diante o espelho, as maneiras de se obter a adequada higiene, e muitas vezes na frente de seus filhos as mães reparam em suas bundas, exibindo suas boas roupas e seus cabelos alisados no shopping, fazendo com que desde cedo suas filhas percebam o que é importante e o que se deve considerar como o “verdadeiro” estilo feminino.

Quanto à socialização entre mães e filhas assim como filhos, que entraram algumas vezes com suas mães, percebi práticas educacionais ligadas a normatividade, na maioria das vezes, quanto aos gestos e olhares, apenas um caso quanto ao discurso. No discurso houve um caráter de censura a uma criança que estava junta com suas primas e tias. A criança parecia ter entre cinco a sete anos. Ela estava de cabelo solto andando alegremente no primeiro espaço do banheiro quando sua prima, eu acho, disse que ela tinha que prender o cabelo, pois estava parecendo uma doida (aqui faço uma inferência para associar doida com descabelada). A prima continuou dizendo que ela tinha que ter deixado seu cabelo com as trancinhas, assim estava mais bonito. O cabelo da criança é ondulado. A criança sendo extremamente reprimida por causa de seu cabelo, ao final disse para a prima para esta não se preocupar muito com seu cabelo já que ela iria com sua mãe ao cabeleireiro para arrumá-lo, fazendo uma escova.

A entrada de mães com filhos também me fez refletir sobre a sexualidade das crianças, quando crianças do sexo masculino entram no banheiro ninguém as vê como algo estranho, absurdo, ninguém recrimina o “pequeno homem”. Pensei então que as crianças, talvez, sejam vistas como seres “assexuados”, ou isentos de malícia, desta forma poderiam compartilhar o ambiente de exclusividade das mulheres, sem afetar a sua masculinidade. No entanto, quando entravam meninos com aproximadamente seis a oito anos eles sentiam-se intimidados ao entrarem no banheiro feminino, como se estivessem freqüentando um espaço que não eram deles. O interessante é que esta reação não se via entre os meninos de três a cinco anos que entravam no banheiro, não havia qualquer sinal de indignação ou estranhamento.

Desta forma, aqui no caso fica uma questão, já que desde o início é necessário reforçar a idéia da divisão do que pertence ao mundo masculino, como carros, violência, negação do apoio aos afazeres domésticos. Relativo ao mundo feminino está a fragilidade, o cuidado, a simplicidade, então, por que não é problemático fazer o menino freqüentar um ambiente exclusivamente feminino? Isso não afetaria a sua masculinidade? Ou a ida no banheiro de um menino é uma forma de socializá-lo desde o início quanto as diferenças do que é o “mundo masculino” e o “mundo feminino”, até mesmo aguçando a manutenção da diferença/da separação e da heterossexualidade, pode-se dizer, talvez.

Fazendo esta observação no banheiro feminino senti uma imensa curiosidade de saber o que ocorre no banheiro masculino, infelizmente nos shoppings essa observação é interditada por eu ser mulher.

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Análise crítica da obra: Antônio Carlos Jobim: uma biografia

Análise crítica da obra:

Antônio Carlos Jobim: uma biografia

por Iolene Lobato


A vida não se organiza facilmente numa narrativa contínua.

Clifford Geertz

1-Introdução

Atualmente as discussões em torno da escrita de si (diários, autobiografia, biografia, carta, correspondência e outros) têm ocupado um importante espaço no campo da literatura e da educação, contudo, extrapolam e efetuam um diálogo com outras áreas do conhecimento, a exemplo da história e da antropologia.

Para Gomes (2004, p.11) “embora o ato de escrever sobre a própria vida e a vida de outros, bem como escrever cartas, seja praticado desde há muito, seu significado ganha contornos específicos com a constituição do individualismo moderno”.

Todavia, esse gênero biografia/ relato de vida e autobiografia ganharam uma nova “roupagem” na modernidade, ao traçar relações, exprimir ou revelar dimensões intimas do indivíduo, carregado de subjetividade, e acima de tudo apontar ou “[...] dizer o que o autor diz que viu, sentiu e experimentou, retrospectivamente, em relação a um acontecimento” (GOMES, 2004, p. 15)

A autobiografia e a biografia na pesquisa antropológica são vistas como desdobramentos que abarcam questões como memória, sujeitos e narrativa, e faz pensar em outras possibilidades para a etnografia. Contudo, até que ponto pode considerar tais escritas, levando em consideração que a mesma está permeada pela subjetividade de quem a escreveu e de quem a narrou.

Dessa forma, tratar uma biografia na perspectiva antropológica significa pensar: quem é o sujeito que narra, qual a escrita produzida e a memória falada, que de uma forma ou outra possibilitará reviver, rememorar coisas do passado individual e coletivo.

Neste sentido a abordagem biográfica possibilita a observação e a reflexão, contudo, não podemos esquecer que ao ler uma biografia, temos que considerar que estamos lendo um relato, pois, a mesma não esgota uma vida inteira. “Algo que pode enfeitiçar o leitor/ pesquisador pelo sentimento de veracidade que lhe é constitutivo, e em face do qual certas reflexões se impõem” (GOMES, 2004, p.15)

Nessa perspectiva o que apresento a seguir é uma tentativa de elaboração de uma análise crítica da obra em referência. O objetivo é tentar levantar alguns pontos que mostrem ou revele nesse tipo de escrita, o “efeito da verdade” que ela é capaz de produzir. Tentando assim, mostrar que seria uma ingenuidade supor que uma biografia revelasse o que “verdadeiramente aconteceu”, apesar da suposta sinceridade expressa na narrativa.

2- Forma, conteúdo e retórica

Escrita em 1997, a obra “Antônio Carlos Jobim: uma biografia” do pesquisador brasileiro Sérgio Cabral, tem o mérito de ser uma obra que narra não apenas a vida do compositor Tom Jobim, mas retrata à história da bossa nova, que se caracteriza como um gênero musical brasileiro mais conhecido em todo o mundo.

Ao tratar da vida de Antônio Carlos Jobim, o “criador” da obra, constrói eixo interpretativo e levanta as questões de vida do sujeito e questões particulares (pessoa pública e sua contribuição para a cultura brasileira). Resume a obra em dezessete capítulos, sendo que os cincos primeiros narram as principais fases da sua vida, infância e adolescência: Tom Jobim, nasceu em 25 de janeiro de 1927, em casa, no bairro da Tijuca. Seu primeiro passeio foi num domingo, 14 de fevereiro a Igreja de Santa Terezinha. No dia 12 de agosto foi vacinado contra varíola, 25 de janeiro de 1928 foi batizado na Igreja de São Francisco de Xavier, seus padrinhos foram seus tios maternos Iolanda e Marcelo Brasileiro de Almeida.

Apesar de aparente linearidade, a presente obra não é organizada com uma progressão de idéias, mas com desdobramentos parciais, pois ao mesmo momento que apresenta as primeiras fases da vida de Tom Jobim, dialoga com outros contextos e personagens, como no caso do casamento de seus pais, contudo, de forma bastante tranqüila, apresentando assim uma visão fluida e dinâmica desta trajetória, ou seja, “[...] navegar em vários mares ao mesmo tempo” (CLIFFORD, 2002, p.104).

Enfatiza a figura do pai desconhecido, o escritor Jorge Jobim, como as crises de ciúmes e o seu falecimento aos 46 anos de idade de colapso cardíaco. Fala do segundo casamento de sua mãe D. Nilza em 1937, com Celso Frota Pessoa, do bairro de Ipanema, do seu primeiro livro Juca e Chico de Willeim Busch e as mudanças de escola em que Tom foi obrigado a fazer em função da dificuldade financeira que a família passava naquele momento.

Cabral (1997) apresenta inúmeras fotos e documentos (certidão de nascimento, relato do primeiro passeio, a ata do Batismo, o primeiro aniversário, Guia de transferência escolar, boletim escolar), recursos que ampliam a consistência da pesquisa biográfica. A fonte visual (imagens, fotografias etc.), constitui uma dimensão importante da vida social e dos processos sociais, pois representa um registro, que permite dentre várias coisas, a interação entre o observador e o observado.

A imagem a esquerda permite inferir a presença marcante da família nuclear, composta por pai, mãe e filho, que predominava naquele momento. À direita, mostra o cenário da cidade do Rio de Janeiro, uma cidade ainda calma, com uma população em crescimento e os trajes masculinos daquele contexto.

Na foto a esquerda mostra o apreço pela natureza ao lado do seu inseparável amigo Vinícius de Moraes, e a direita em um bar carioca com a musa que inspirou a compor Garota de Ipanema.

Halbwachs (2006, p.56) salienta que “um rosto não é somente uma imagem visual. As expressões, os detalhes de uma fisionomia podem ser interpretadas de muitas maneiras, conforme as pessoas que o cercam, conforme a direção de nosso pensamento nesse ou naquele momento”.

E no decorrer da narrativa, Cabral (1997) aponta inúmeros fatos para legitimar a presente obra, como por exemplo, ao narrar que aos 13 anos de idade Tom já tinha boas relações com a música, interessava-se em tocar piano, sua mãe vendo o entusiasmo do filho, contrata o professor Koellreutter. Fala do seu apreço pela matemática, e na facilidade de resolver alguns problemas que era motivo de grande satisfação pessoal. E com 15 anos conheceu Teresa Otero Hermanny, sua primeira namorada.

O autor retrata que em 1944 dois acontecimentos que abalaram a vitalidade do jovem Tom Jobim, o primeiro foi o envolvimento com uma linda moça, que resultou em cancro furo que levou a um longo e sofrimento tratamento contra sífilis. O segundo, provocou mudanças na vida jovem, em uma pirâmide humana montada pelos companheiros de praia, ele, de cabeça para baixo, tentou apóia-se no ombro de um companheiro, escorregou e caiu fraturando uma apófise, encerrando assim a carreira de atleta. Que tem inúmeras conseqüências, dentre ela, a aproximação com o piano e adesão à boemia.


A carta escrita por Tom Jobim destinada a Vinícius de Moraes, é um importante recurso, pois se caracteriza como fonte e é permeada por um universo de detalhes, por um discurso, com relações entre remetente e destinatário, possui um sentido e uma razão, uma representação, enfim, não se trata apenas de um simples documento, mas de uma narrativa carregada de uma realidade daquele que escreve.


E deve o pesquisador atentar-se a essas particularidades, ter um novo olhar para investigar as inúmeras problemáticas abertas com a disseminação das práticas da leitura e da escrita de si.

Para Gomes

O ato de escrever para si e para os outros atenua as angústias da solidão, desempenhando o papel de um companheiro, ao qual quem escreve se expõe, dando uma “prova” de sinceridade. Há necessidade e prazer na troca de cartas: “faz tempo que você não me escreve”, “responda-me com urgência”, “ você me esqueceu: não me escreve mais...” (2004, p. 21)

Dessa forma, a carta é um tipo de documento reservado, pelas barreiras impostas pelos segredos (profissionais, políticos, familiares), contudo é um espaço para a construção de redes e vínculos sociais.

A partir do sexto capítulo começa a narrar sua vida pública e musical, conhecida e aplaudida nacional e internacionalmente, como o lançamento de discos, as conquistas nacionais como, Palma de Ouro do Festival de Cannes, convites como o de Juscelino Kubistchek para a inauguração de Brasília, seus empreendimentos como um apartamento da Rua Nascimento Silva, do seu cantinho de sossego no sítio de Poço Fundo, local este onde compôs inúmeros sambas, como por exemplo, O amor, o sorriso e a flor.

A obra se caracteriza marcantemente por questões de gênero. As relações estabelecidas entre este famoso compositor quase sempre está ligada ao contexto masculino (bares, amigos, compromissos, encontros, etc.) são raros a priori o contato com o gênero feminino. Sem dizer da total a ausência da fala de sua esposa Teresa em relação à vida boemia de Tom Jobim, o que pressupõe certo silêncio e quem sabe uma certa “obediência” ao marido que se desdobrava nas madrugadas nos bares cariocas.

Questões particulares como o medo de voar “o avião não pode voar porque é mais pesado do que o ar; é movido por um troço chamado motor a explosão [...]” (CABRAL, 1997, p.192), são elencadas para mostrar ao leitor, que o famoso compositor era um homem de carne e osso. Sem falar que esse medo dificultou ou quase impediu sua apresentação no Carnegie Hall em Nova York, com muito custo o escritor Fernando Sabino conseguiu convencê-lo que o avião não iria cair.

Não obstante, a obra é repleta por alegorias, de histórias que leva o leitor a (re) elaborar a própria história contada. Para Clifford (1998, p.104) ”qualquer história tem uma propensão a gerar outra história na mente do seu leitor (ou ouvinte), a repetir e deslocar alguma história anterior”.

Ele traçou o melhor rumo para a música popular brasileira, a partir da década de 1950. Pra lá de um magnífico criador, foi um inovador. Se somarmos a essas virtudes o personagem encantador das mesas de bar, o lutador pioneiro e insistente na defesa da ecologia, o apaixonado pelo Rio de Janeiro e pelo Brasil, o criador de frases, o homem bonito e charmoso, o declamador de poesias e o cidadão do mundo, o resultado será Antônio Carlos Jobim (CABRAL, 1997, p.7)

Nesse sentido, essa narrativa é rica em metáforas, em natureza poética, em apelo ficcional e chama atenção do leitor, que não fica preso apenas a história em si, mas passa a imaginar e a gerar outra história: sobre o ambientalista Tom Jobim e ao mesmo tempo a indagar se o mesmo se constitui com todos esses adjetivos apresentados. Como também leva a confundir a noção da pessoa, do individuo e sociedade, pois ao remeter ao nome Tom Jobim, necessariamente fala-se da cultura brasileira.

Para Clifford (1998, p.65) “A alegoria (do grego allos, “outro”, e agoreuein, “falar”) normalmente denota uma prática na qual uma ficção narrativa continuamente se refere a outro padrão de idéias ou eventos. Ela é uma representação que “interpreta” a si mesma”.

Em 1962, Tom Jobim desponta como o melhor compositor brasileiro e como estrela de primeira grandeza na musica nos Estados Unidos. Nem com a fama e o sucesso, Tom Jobim deixou de realizar encontros musicais em sua casa, sendo que numa certa noite, “a vizinha chamou a polícia e a reunião foi interrompida pela entrada de policiais portando escudo, como se fossem participar de uma batalha” (CABRAL, 1997, p. 201).

Em 1966 Tom Jobim recebe convite de Frank Sinatra para trabalharem juntos em um disco, que foi um sucesso e ocupou o segundo lugar entre os mais vendidos, perdendo apenas para os Beatles.

E sendo a escrita de si “uma das práticas culturais que integram um conjunto de novas relações intimas próprio à sociedade moderna que consagrou o individualismo” (GOMES, 2004, p.16) ou seja, retrata ainda o contexto social do sujeito da narrativa

Apesar das críticas brasileiras desfavoráveis, as conquistas internacionais de Orfeu Negro foi motivo de euforia no país, numa época em que o clima era de muita esperança, proporcionada pela política desenvolvimentista do presidente Juscelino Kubitschek. Vários fatos contribuíram para o otimismo popular: a vitória da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1958, na Suécia, as conquistas da tenista Maria Ester Bueno em quase todas as competições internacionais, a construção de Brasília, a implantação da indústria automobilística, o título de campeão mundial de boxe (peso-galo) conquistado por Éder Jogre, a estrada Belém - Brasília riscando a selva amazônica, os reduzidos índices de inflação e de desemprego etc. A própria bossa nova serviu como uma espécie de trilha sonora do clima de esperança da segunda metade da década de 1950 (CABRAL, 1998, p. 112)

Nesta perspectiva, uma biografia não traz somente o âmbito do privado ou um arquivo pessoal em si, mas um discurso, um resgate de aspectos e um contexto social que representa a multiplicidade das facetas sociais, mudanças, costumes, poder e política. “Em 1971, o Brasil enfrentava, mais do que nunca, as trevas da ditadura militar. A música popular brasileira, particularmente, sofria horrores. Compositores deixavam o país, outros eram convocados para interrogatórios e todos eram humilhados pela ação da censura” (CABRAL, 1997, p.297)

Nos anos de 1974-75 Tom Jobim passou a “aparecer nos bares com a cabeça coberta por um chapéu, compondo um tipo que permaneceria até a sua morte” (CABRAL, 1997, p.325). Freqüentador assíduo dos bares e restaurantes de Ipanema, sempre acompanhado pelo cigarro, o uísque e seus amigos da boemia.

Após 35 anos casados com Teresa, Tom separa-se e em 1986 oficializa seu casamento com Ana Beatriz com quem já vivia alguns anos. Em 1980 morre seu amigo Vinicius de Moraes “foi a morte de Vinícius que me deu a convicção de que não somos imortais”(CABRAL, 1997, p.352).

O capítulo XV intitulado O Sexagenário, Tom Jobim completa 60 anos e recolhe-se no sítio e em entrevista à revista Visão diz que sentia “vergonhosamente feliz” e afirmou que não bebia há nove meses; que os exames de saúde acusavam uma boa melhora do seu estado geral e que a morte, portanto, estava “temporariamente adiada”.

No capitulo final, O apagar do sol, o autor relata sua luta contra a má circulação do sangue, do câncer na bexiga, mas concedendo entrevistas, lançamento do disco Antônio Brasileiro, operou em Nova York do câncer de bexiga, três dias depois sofreu uma parada cardíaca e não resistiu provocado por uma embolia pulmonar vindo a falecer, foi sepultado no cemitério São João Batista.

Gilberto Gil que apresentava no Palace, em São Paulo homenageou seu amigo com a música Eu sei que vou te amar de autoria do próprio Tom Jobim.


Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente, eu sei que vou te amar
E cada verso meu será
Prá te dizer que eu sei que vou te amar
Por toda minha vida
Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que esta ausência tua me causou
Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida




Cabral (1997, p. 445) finaliza a biografia de Tom Jobim enfatizando que “Apagou-se o Sol, na musica brasileira e nas mesas dos bares cariocas, naquela manhã de 8 de dezembro de 1994 “.

3- Considerações Finais

Por mais que uma biografia retrate e narre à vida de um personagem, a mesma deve ser analisada e criticada, enquanto documento etnográfico. Não por ser apenas uma importante fonte de análise, mas por transmitir ao leitor/ pesquisador ou antropólogo certa “veracidade”. Crapanzano (1984) ressalta que o relato biográfico é um texto e não uma vida. Isso significa que uma vida ou um relato de vida, não pode ser literalmente interpretado por um segundo ou terceiro (permeado de subjetividade) e nem tampouco escrita em poucos capítulos.

E a antropologia vem justamente alertar e mostrar que o antropólogo ao realizar uma etnografia ou analisar uma escrita de si, deve criticar e refletir sobre o documento e estar atento a inúmeras questões, dentre elas: como captar o privado, o secreto? Quem é o sujeito que escreve? Como foi construída a narrativa? Como avaliar o discurso e a autoridade do texto?

Neste sentido “cartas, como diários, memórias e outras formas de escrita de si aproximam, sendo discursos que mobilizam a sinceridade como valor de verdade, mas não podem, por isso, ser tratadas como formas naturalizadas e espontâneas” (GOMES, 2004, p.22) Por este motivo a antropologia estuda a biografia como forma de conhecimento.

4- Referências bibliográficas

CABRAL, Sérgio. Antônio Carlos Jobim: uma biografia. Rio de Janeiro: Lumiar Edit, 1997.

CLIFFORD, James. Sobre a alegoria etnográfica. In: A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Edit. UFRJ, 1998, p. 63-99.

CRAPANZANO, Vicente. Diálogo. In: Anuário Antropológico/88. p.59-79

GEERTZ, Clifford. Testemunha ocular: os filhos de Malinowski. In: Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Edit. UFRJ, 2002, p. 99-134.

GOMES, Ângela de Castro (org). Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In. Escrita de si, Escrita da História. Rio de Janeiro: Edit. FGV, 2004. p.7-25.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.