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segunda-feira, 29 de junho de 2009

Análise crítica da obra: Antônio Carlos Jobim: uma biografia

Análise crítica da obra:

Antônio Carlos Jobim: uma biografia

por Iolene Lobato


A vida não se organiza facilmente numa narrativa contínua.

Clifford Geertz

1-Introdução

Atualmente as discussões em torno da escrita de si (diários, autobiografia, biografia, carta, correspondência e outros) têm ocupado um importante espaço no campo da literatura e da educação, contudo, extrapolam e efetuam um diálogo com outras áreas do conhecimento, a exemplo da história e da antropologia.

Para Gomes (2004, p.11) “embora o ato de escrever sobre a própria vida e a vida de outros, bem como escrever cartas, seja praticado desde há muito, seu significado ganha contornos específicos com a constituição do individualismo moderno”.

Todavia, esse gênero biografia/ relato de vida e autobiografia ganharam uma nova “roupagem” na modernidade, ao traçar relações, exprimir ou revelar dimensões intimas do indivíduo, carregado de subjetividade, e acima de tudo apontar ou “[...] dizer o que o autor diz que viu, sentiu e experimentou, retrospectivamente, em relação a um acontecimento” (GOMES, 2004, p. 15)

A autobiografia e a biografia na pesquisa antropológica são vistas como desdobramentos que abarcam questões como memória, sujeitos e narrativa, e faz pensar em outras possibilidades para a etnografia. Contudo, até que ponto pode considerar tais escritas, levando em consideração que a mesma está permeada pela subjetividade de quem a escreveu e de quem a narrou.

Dessa forma, tratar uma biografia na perspectiva antropológica significa pensar: quem é o sujeito que narra, qual a escrita produzida e a memória falada, que de uma forma ou outra possibilitará reviver, rememorar coisas do passado individual e coletivo.

Neste sentido a abordagem biográfica possibilita a observação e a reflexão, contudo, não podemos esquecer que ao ler uma biografia, temos que considerar que estamos lendo um relato, pois, a mesma não esgota uma vida inteira. “Algo que pode enfeitiçar o leitor/ pesquisador pelo sentimento de veracidade que lhe é constitutivo, e em face do qual certas reflexões se impõem” (GOMES, 2004, p.15)

Nessa perspectiva o que apresento a seguir é uma tentativa de elaboração de uma análise crítica da obra em referência. O objetivo é tentar levantar alguns pontos que mostrem ou revele nesse tipo de escrita, o “efeito da verdade” que ela é capaz de produzir. Tentando assim, mostrar que seria uma ingenuidade supor que uma biografia revelasse o que “verdadeiramente aconteceu”, apesar da suposta sinceridade expressa na narrativa.

2- Forma, conteúdo e retórica

Escrita em 1997, a obra “Antônio Carlos Jobim: uma biografia” do pesquisador brasileiro Sérgio Cabral, tem o mérito de ser uma obra que narra não apenas a vida do compositor Tom Jobim, mas retrata à história da bossa nova, que se caracteriza como um gênero musical brasileiro mais conhecido em todo o mundo.

Ao tratar da vida de Antônio Carlos Jobim, o “criador” da obra, constrói eixo interpretativo e levanta as questões de vida do sujeito e questões particulares (pessoa pública e sua contribuição para a cultura brasileira). Resume a obra em dezessete capítulos, sendo que os cincos primeiros narram as principais fases da sua vida, infância e adolescência: Tom Jobim, nasceu em 25 de janeiro de 1927, em casa, no bairro da Tijuca. Seu primeiro passeio foi num domingo, 14 de fevereiro a Igreja de Santa Terezinha. No dia 12 de agosto foi vacinado contra varíola, 25 de janeiro de 1928 foi batizado na Igreja de São Francisco de Xavier, seus padrinhos foram seus tios maternos Iolanda e Marcelo Brasileiro de Almeida.

Apesar de aparente linearidade, a presente obra não é organizada com uma progressão de idéias, mas com desdobramentos parciais, pois ao mesmo momento que apresenta as primeiras fases da vida de Tom Jobim, dialoga com outros contextos e personagens, como no caso do casamento de seus pais, contudo, de forma bastante tranqüila, apresentando assim uma visão fluida e dinâmica desta trajetória, ou seja, “[...] navegar em vários mares ao mesmo tempo” (CLIFFORD, 2002, p.104).

Enfatiza a figura do pai desconhecido, o escritor Jorge Jobim, como as crises de ciúmes e o seu falecimento aos 46 anos de idade de colapso cardíaco. Fala do segundo casamento de sua mãe D. Nilza em 1937, com Celso Frota Pessoa, do bairro de Ipanema, do seu primeiro livro Juca e Chico de Willeim Busch e as mudanças de escola em que Tom foi obrigado a fazer em função da dificuldade financeira que a família passava naquele momento.

Cabral (1997) apresenta inúmeras fotos e documentos (certidão de nascimento, relato do primeiro passeio, a ata do Batismo, o primeiro aniversário, Guia de transferência escolar, boletim escolar), recursos que ampliam a consistência da pesquisa biográfica. A fonte visual (imagens, fotografias etc.), constitui uma dimensão importante da vida social e dos processos sociais, pois representa um registro, que permite dentre várias coisas, a interação entre o observador e o observado.

A imagem a esquerda permite inferir a presença marcante da família nuclear, composta por pai, mãe e filho, que predominava naquele momento. À direita, mostra o cenário da cidade do Rio de Janeiro, uma cidade ainda calma, com uma população em crescimento e os trajes masculinos daquele contexto.

Na foto a esquerda mostra o apreço pela natureza ao lado do seu inseparável amigo Vinícius de Moraes, e a direita em um bar carioca com a musa que inspirou a compor Garota de Ipanema.

Halbwachs (2006, p.56) salienta que “um rosto não é somente uma imagem visual. As expressões, os detalhes de uma fisionomia podem ser interpretadas de muitas maneiras, conforme as pessoas que o cercam, conforme a direção de nosso pensamento nesse ou naquele momento”.

E no decorrer da narrativa, Cabral (1997) aponta inúmeros fatos para legitimar a presente obra, como por exemplo, ao narrar que aos 13 anos de idade Tom já tinha boas relações com a música, interessava-se em tocar piano, sua mãe vendo o entusiasmo do filho, contrata o professor Koellreutter. Fala do seu apreço pela matemática, e na facilidade de resolver alguns problemas que era motivo de grande satisfação pessoal. E com 15 anos conheceu Teresa Otero Hermanny, sua primeira namorada.

O autor retrata que em 1944 dois acontecimentos que abalaram a vitalidade do jovem Tom Jobim, o primeiro foi o envolvimento com uma linda moça, que resultou em cancro furo que levou a um longo e sofrimento tratamento contra sífilis. O segundo, provocou mudanças na vida jovem, em uma pirâmide humana montada pelos companheiros de praia, ele, de cabeça para baixo, tentou apóia-se no ombro de um companheiro, escorregou e caiu fraturando uma apófise, encerrando assim a carreira de atleta. Que tem inúmeras conseqüências, dentre ela, a aproximação com o piano e adesão à boemia.


A carta escrita por Tom Jobim destinada a Vinícius de Moraes, é um importante recurso, pois se caracteriza como fonte e é permeada por um universo de detalhes, por um discurso, com relações entre remetente e destinatário, possui um sentido e uma razão, uma representação, enfim, não se trata apenas de um simples documento, mas de uma narrativa carregada de uma realidade daquele que escreve.


E deve o pesquisador atentar-se a essas particularidades, ter um novo olhar para investigar as inúmeras problemáticas abertas com a disseminação das práticas da leitura e da escrita de si.

Para Gomes

O ato de escrever para si e para os outros atenua as angústias da solidão, desempenhando o papel de um companheiro, ao qual quem escreve se expõe, dando uma “prova” de sinceridade. Há necessidade e prazer na troca de cartas: “faz tempo que você não me escreve”, “responda-me com urgência”, “ você me esqueceu: não me escreve mais...” (2004, p. 21)

Dessa forma, a carta é um tipo de documento reservado, pelas barreiras impostas pelos segredos (profissionais, políticos, familiares), contudo é um espaço para a construção de redes e vínculos sociais.

A partir do sexto capítulo começa a narrar sua vida pública e musical, conhecida e aplaudida nacional e internacionalmente, como o lançamento de discos, as conquistas nacionais como, Palma de Ouro do Festival de Cannes, convites como o de Juscelino Kubistchek para a inauguração de Brasília, seus empreendimentos como um apartamento da Rua Nascimento Silva, do seu cantinho de sossego no sítio de Poço Fundo, local este onde compôs inúmeros sambas, como por exemplo, O amor, o sorriso e a flor.

A obra se caracteriza marcantemente por questões de gênero. As relações estabelecidas entre este famoso compositor quase sempre está ligada ao contexto masculino (bares, amigos, compromissos, encontros, etc.) são raros a priori o contato com o gênero feminino. Sem dizer da total a ausência da fala de sua esposa Teresa em relação à vida boemia de Tom Jobim, o que pressupõe certo silêncio e quem sabe uma certa “obediência” ao marido que se desdobrava nas madrugadas nos bares cariocas.

Questões particulares como o medo de voar “o avião não pode voar porque é mais pesado do que o ar; é movido por um troço chamado motor a explosão [...]” (CABRAL, 1997, p.192), são elencadas para mostrar ao leitor, que o famoso compositor era um homem de carne e osso. Sem falar que esse medo dificultou ou quase impediu sua apresentação no Carnegie Hall em Nova York, com muito custo o escritor Fernando Sabino conseguiu convencê-lo que o avião não iria cair.

Não obstante, a obra é repleta por alegorias, de histórias que leva o leitor a (re) elaborar a própria história contada. Para Clifford (1998, p.104) ”qualquer história tem uma propensão a gerar outra história na mente do seu leitor (ou ouvinte), a repetir e deslocar alguma história anterior”.

Ele traçou o melhor rumo para a música popular brasileira, a partir da década de 1950. Pra lá de um magnífico criador, foi um inovador. Se somarmos a essas virtudes o personagem encantador das mesas de bar, o lutador pioneiro e insistente na defesa da ecologia, o apaixonado pelo Rio de Janeiro e pelo Brasil, o criador de frases, o homem bonito e charmoso, o declamador de poesias e o cidadão do mundo, o resultado será Antônio Carlos Jobim (CABRAL, 1997, p.7)

Nesse sentido, essa narrativa é rica em metáforas, em natureza poética, em apelo ficcional e chama atenção do leitor, que não fica preso apenas a história em si, mas passa a imaginar e a gerar outra história: sobre o ambientalista Tom Jobim e ao mesmo tempo a indagar se o mesmo se constitui com todos esses adjetivos apresentados. Como também leva a confundir a noção da pessoa, do individuo e sociedade, pois ao remeter ao nome Tom Jobim, necessariamente fala-se da cultura brasileira.

Para Clifford (1998, p.65) “A alegoria (do grego allos, “outro”, e agoreuein, “falar”) normalmente denota uma prática na qual uma ficção narrativa continuamente se refere a outro padrão de idéias ou eventos. Ela é uma representação que “interpreta” a si mesma”.

Em 1962, Tom Jobim desponta como o melhor compositor brasileiro e como estrela de primeira grandeza na musica nos Estados Unidos. Nem com a fama e o sucesso, Tom Jobim deixou de realizar encontros musicais em sua casa, sendo que numa certa noite, “a vizinha chamou a polícia e a reunião foi interrompida pela entrada de policiais portando escudo, como se fossem participar de uma batalha” (CABRAL, 1997, p. 201).

Em 1966 Tom Jobim recebe convite de Frank Sinatra para trabalharem juntos em um disco, que foi um sucesso e ocupou o segundo lugar entre os mais vendidos, perdendo apenas para os Beatles.

E sendo a escrita de si “uma das práticas culturais que integram um conjunto de novas relações intimas próprio à sociedade moderna que consagrou o individualismo” (GOMES, 2004, p.16) ou seja, retrata ainda o contexto social do sujeito da narrativa

Apesar das críticas brasileiras desfavoráveis, as conquistas internacionais de Orfeu Negro foi motivo de euforia no país, numa época em que o clima era de muita esperança, proporcionada pela política desenvolvimentista do presidente Juscelino Kubitschek. Vários fatos contribuíram para o otimismo popular: a vitória da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1958, na Suécia, as conquistas da tenista Maria Ester Bueno em quase todas as competições internacionais, a construção de Brasília, a implantação da indústria automobilística, o título de campeão mundial de boxe (peso-galo) conquistado por Éder Jogre, a estrada Belém - Brasília riscando a selva amazônica, os reduzidos índices de inflação e de desemprego etc. A própria bossa nova serviu como uma espécie de trilha sonora do clima de esperança da segunda metade da década de 1950 (CABRAL, 1998, p. 112)

Nesta perspectiva, uma biografia não traz somente o âmbito do privado ou um arquivo pessoal em si, mas um discurso, um resgate de aspectos e um contexto social que representa a multiplicidade das facetas sociais, mudanças, costumes, poder e política. “Em 1971, o Brasil enfrentava, mais do que nunca, as trevas da ditadura militar. A música popular brasileira, particularmente, sofria horrores. Compositores deixavam o país, outros eram convocados para interrogatórios e todos eram humilhados pela ação da censura” (CABRAL, 1997, p.297)

Nos anos de 1974-75 Tom Jobim passou a “aparecer nos bares com a cabeça coberta por um chapéu, compondo um tipo que permaneceria até a sua morte” (CABRAL, 1997, p.325). Freqüentador assíduo dos bares e restaurantes de Ipanema, sempre acompanhado pelo cigarro, o uísque e seus amigos da boemia.

Após 35 anos casados com Teresa, Tom separa-se e em 1986 oficializa seu casamento com Ana Beatriz com quem já vivia alguns anos. Em 1980 morre seu amigo Vinicius de Moraes “foi a morte de Vinícius que me deu a convicção de que não somos imortais”(CABRAL, 1997, p.352).

O capítulo XV intitulado O Sexagenário, Tom Jobim completa 60 anos e recolhe-se no sítio e em entrevista à revista Visão diz que sentia “vergonhosamente feliz” e afirmou que não bebia há nove meses; que os exames de saúde acusavam uma boa melhora do seu estado geral e que a morte, portanto, estava “temporariamente adiada”.

No capitulo final, O apagar do sol, o autor relata sua luta contra a má circulação do sangue, do câncer na bexiga, mas concedendo entrevistas, lançamento do disco Antônio Brasileiro, operou em Nova York do câncer de bexiga, três dias depois sofreu uma parada cardíaca e não resistiu provocado por uma embolia pulmonar vindo a falecer, foi sepultado no cemitério São João Batista.

Gilberto Gil que apresentava no Palace, em São Paulo homenageou seu amigo com a música Eu sei que vou te amar de autoria do próprio Tom Jobim.


Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente, eu sei que vou te amar
E cada verso meu será
Prá te dizer que eu sei que vou te amar
Por toda minha vida
Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que esta ausência tua me causou
Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida




Cabral (1997, p. 445) finaliza a biografia de Tom Jobim enfatizando que “Apagou-se o Sol, na musica brasileira e nas mesas dos bares cariocas, naquela manhã de 8 de dezembro de 1994 “.

3- Considerações Finais

Por mais que uma biografia retrate e narre à vida de um personagem, a mesma deve ser analisada e criticada, enquanto documento etnográfico. Não por ser apenas uma importante fonte de análise, mas por transmitir ao leitor/ pesquisador ou antropólogo certa “veracidade”. Crapanzano (1984) ressalta que o relato biográfico é um texto e não uma vida. Isso significa que uma vida ou um relato de vida, não pode ser literalmente interpretado por um segundo ou terceiro (permeado de subjetividade) e nem tampouco escrita em poucos capítulos.

E a antropologia vem justamente alertar e mostrar que o antropólogo ao realizar uma etnografia ou analisar uma escrita de si, deve criticar e refletir sobre o documento e estar atento a inúmeras questões, dentre elas: como captar o privado, o secreto? Quem é o sujeito que escreve? Como foi construída a narrativa? Como avaliar o discurso e a autoridade do texto?

Neste sentido “cartas, como diários, memórias e outras formas de escrita de si aproximam, sendo discursos que mobilizam a sinceridade como valor de verdade, mas não podem, por isso, ser tratadas como formas naturalizadas e espontâneas” (GOMES, 2004, p.22) Por este motivo a antropologia estuda a biografia como forma de conhecimento.

4- Referências bibliográficas

CABRAL, Sérgio. Antônio Carlos Jobim: uma biografia. Rio de Janeiro: Lumiar Edit, 1997.

CLIFFORD, James. Sobre a alegoria etnográfica. In: A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Edit. UFRJ, 1998, p. 63-99.

CRAPANZANO, Vicente. Diálogo. In: Anuário Antropológico/88. p.59-79

GEERTZ, Clifford. Testemunha ocular: os filhos de Malinowski. In: Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Edit. UFRJ, 2002, p. 99-134.

GOMES, Ângela de Castro (org). Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In. Escrita de si, Escrita da História. Rio de Janeiro: Edit. FGV, 2004. p.7-25.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

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