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terça-feira, 24 de novembro de 2009

A descolonização que não passa

A descolonização que não passa

Prof. Dr. Armando Gnisci

Universidade de Roma "La Sapienza"
A filósofa Iris Marion Young, de Chicago, Illinois, em um manifesto de 7 de agosto, crucificou os grandes filósofos europeus: Derrida, Vattimo, Eco e Savater, dentre outros, que, no dia 31 de maio último, guiados por J. Habermas, fizeram um apelo, nos jornais de maior circulação, aos cidadãos de nosso continente, exortando-os a elaborar uma identidade política comum a fim de resistir à hegemonia dos cowboys ( não tomei a imagem por empréstimo de Young, nem mesmo de Habermas, mas do poeta Josif Brodskij), e a fazê-lo em nome de uma nascente “esfera pública européia” aberta à idéia de uma democracia cosmopolita renovada, que, segundo os nossos filósofos, teria de fazer referência ao glorioso passado de nossa civilização – cristianismo, liberdade individual e direitos humanos, capitalismo e welfare, ciência, filosofia – e, depois, aos órgãos de poder atuais: G8, WTO, FMI e Banco Mundial. Que pensamento penoso (demasiado forte para os fracos)!

Young tem todas as razões para atacar a filosofia vigente na Europa, e fá-lo à exaustão, em nome das idéias do Fórum Social Mundial de Porto Alegre e da “busca de igualdade” que apenas o mundialismo verdadeiro pode gerar: aquele que sopra do sul do planeta e do futuro. Bem dito. Eu subscrevo a reflexão de Young e a relanço para os europeus.

O que propõe a filósofa yankee? Em síntese, ela afirma que o discurso de Habermas e Cia parece querer propor um perigoso “recentramento” da Europa e que, ao contrário, o projeto progressivo deveria consistir, de acordo com as palavras de Dipesh Chakabarty, em provincializar a Europa. Bem, vejamos o que ela entende por “recentramento”. Ela afirma que a nova consciência européia significa re- estabelecer o centro e o norte ( “na garupa”, a imagem é minha) do mundo, junto com os EUA. E o que ela entende por “provincializar”? Reduzir o centro do mundo a um vazio, com todos os povos em torno, como províncias iguais do humano. Pois bem.

Sustenho e pratico, não sozinho, essa poética há muitos anos, como literato europeu. Eu a denominei “colóquio” (do Latim pluralista, ao invés do Grego platônico e do jesuítico “diálogo”). E também há muitos anos atrás, os curadores do volume de estudos em honra do comparatista da universidade de Aquisgrana (Aachen, perto Maastricht) Hugo Dyserinck, que abandonava o ensino, reuniu os nossos escritos sob o título, absolutamente discreto e moderado, ao menos para nós comparatistas, Europa província mundi.

Pausa: não sei se já dei sinais da minha alteração. Sim, começo a alterar-me. Vejamos porquê. Aprendi muito com os humanistas americanos. bell hooks (1) e Gloria Anzaldúa são verdadeiras musas e líderes que me permitiram pensar e praticar melhor a minha vida/trabalho, mas a filosofia de Young me parece um pouco catedrática, muito embora se apresente do ponto de vista Novo Global de um modo justo.
Que Habermas e Cia os desagradem, não é motivo para abalo. Mas que isso (o gesto de inverter o argumento dos filósofos europeus com um pouco de pensamento pós-colonial) signifique também chegar a “impor” o que nós humanistas europeus devemos fazer, efetivamente me incomoda.

Chegamos, então, ao ponto. Nós, europeus, adoramos Clio, a deusa da história. Derek Walcott, o poeta das Caraíbas, demonstrou isso com clareza. E Clio, como o anjo de Walter Benjamim, olha para trás: obtorto collo (ainda uma pílula fácil de Latim; Brodskij adorava brincar com essa mania). Para Benjamim, o anjo retrovisor vê escombros; para os nossos filósofos em serviço, ao contrário, ele vê a glória magnífica, progressiva e extensa da identidade/ civilização da Europa: cristianismo, liberalismo etc.

Afirmo que o que cabe a nós, europeus, ao invés disso, encontrar (retirar do esconderijo opaco do removido-ausente) o negativo retroativo da nossa história e praticar a crítica do remorso, como ensinou De Martino. Do que falo? Do que nos meus escritos —tomei por empréstimo esse hábito precioso e tolo de um outro filósofo, o euro-parmenídeo Emanuele Severino – tenho chamado de “descolonização européia feita por nós mesmos, não solitária, mas fruto do aprendizado com os outros”. Falo pelo primeiro Sartre – rappellez-vous? – quando apresenta o livro de Franz Fanon, Os condenados da terra.
Só após essa crítica cirúrgica “esfolante” (Sartre), se pode iniciar a criação de uma nova identidade européia pública, que nos possa permitir sermos aceitos no colloquium generale das diferenças dos mundos. Essa é a direção do nosso “provincializarmo-nos”. Difícil, improvável, clandestina, mas simplesmente pronunciada e praticada. Gramsci ( que agrada a Stuart Hall e a James Clifford) nos ensinou a voltarmos a guardar as coisas como são agora.

Como vê, gentil filósofa de Illinois, assim como diziam os antigos da África e da Europa, nunca cessa de chegar aliquid novi.

Além disso, afirmo que nós europeus necessitamos mesmo de nos “recentrarmos”. Tudo bem que, não no fluxo da banalidade de Habermas e Cia (e os mais estereotipados, parecem-me ser os italianos Eco e Vattimo, no fim de maio), mas em busca das nossas diferenças reais e do nosso projeto e futuro junto a todos os outros.

Recentrarmo-nos não ao centro do mundo, mas sobre fatos nossos: navegando implacáveis no abismo opaco da destituição que fizemos da nossa sede de poder, para remordê-la e saná-la. Só assim, conforme disse, poderemos ser admitidos no W1000: a busca do colóquio planetário das multidões ( Toni Negri) da espécie. O colonialismo foi e é a nossa doença, conforme nos ensinaram Aimé Césaire, Frantz Fanon e Édouard Glissant, o tunisiano Albert Memmi, o afro-britânico Paul Gilroy, a caraíba (do lugarejo da ilha de Antigua) Jamaica Kincaide, Toni Morrison e Nadine Gordimer, a branca negra, o queniano Ngugi wa Thiong’o e o indiano Amitav Ghosh, Simone Weil e os tropicalistas brasileiros, de Gilberto Freire a Caetano Veloso (nenhum deles filósofo de profissão) e tantos outros, há tantos anos. E também os “migrantes” que acorrem à Europa vindos de toda parte do mundo. Formam todos juntos uma esteira subterrânea e paralela à grande filosofia européia, de Hegel (para o qual os africanos eram sub-humanos sem história) a Habermas.

Para terminar, Senhora Young, nós em Ausonia estamos muito mal. Somos governados por um tirano, ex-cantor de ferry boat, um sátrapa atarracado e impune, palafreneiro no rancho texano do imperador Bush. E os filósofos progressistas que temos em serviço são apenas pessoas inteligentes e bem-sucedidas. Assim, torna-se sempre muito difícil “descolonizarmo-nos”. Há resistência. E como a senhora vê os EUA, se é verdade que Arnold Schwarzenegger está destinado a percorrer o caminho de Reagan? Como estão se organizando para “provincializarem-se”? As fadas sempre correram sobre Derrida, ou agora usam incenso indiano: Homi Bhabha, Gayatri Chakravoty Spivak e Dipesh Chakabarty? E o que me diz da rebelião estudantil universitária contra a guerra no Iraque?

Seja como for, boa sorte!
Nota
bell hooks adotou a grafia de seu nome em minúsculas e, em respeito às convicções que a levaram a fazê-lo, eu a mantenho neste texto.

* Tradução de Shirley de S. G. Carreira

VOLUME II, NÚMERO VI - Jul-Set 2003

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