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terça-feira, 11 de agosto de 2009

DO NATURAL AO SOCIAL - DISCUSSÕES SOBRE O OLHAR QUANTO A GÊNERO E CORPO

DO NATURAL AO SOCIAL: DISCUSSÕES SOBRE O OLHAR QUANTO A GÊNERO E CORPO

Katianne de Sousa Almeida


Resumo

A humanidade e suas peculiaridades de acordo com Ingold (1955) é o tema peculiar da antropologia. Neste artigo, as diferenças de análise ao longo dos anos pela abordagem antropológica das categorias: sexualidade e corpo mostram um pouco da própria história desta ciência. Ora, estas categorias passaram de um entendimento da ordem religiosa para uma perspectiva de pensar o homem como um ser unilateral e fisiologicamente mutilado (século XVIII e XIX) para que no século XX houvesse um refinamento conceitual que tomasse na íntegra esse sujeito. O refinamento conceitual aqui considerado foi baseado nos pressupostos de Margaret Mead e Marcel Mauss, contudo, estes pensadores não trataram esse sujeito de maneira igual. As reflexões consideram que as diferenças que existem entre as formas pelas quais o corpo é pensado assim como o sexo/gênero são definidas em diferentes sociedades e estas resultam das interpretações específicas e possíveis sobre as organizações da vida do homem em coletividade.

Palavras-Chave: Corpo, Gênero, binarismo, evolucionismo, Margaret Mead e Marcel Mauss.

Quem pode mesmo dizer que essa “categoria”, que todos aqui acreditamos estabelecida, será sempre reconhecida como tal? Ela só se formou para nós, entre nós.

Marcel Mauss

E no Princípio houve a dicotomia

É no Ocidente que se forja o pensamento intelectual sobre o outro e as conseqüentes categorizações sobre a diversidade deste outro. Para esclarecer tal diversidade os intelectuais tentaram tratar essa diversidade pela diferença e também, porque não dizer, pelas igualdades entre humanos e animais.

Para nós, que fomos criados no contexto da tradição do pensamento ocidental, os conceitos de “humano” e “animal” parecem cheios de associações, repletos de ambigüidades e sobrecarregados de preconceitos intelectuais e emocionais (INGOLD, 1955, pp. 39).

As discussões e as percepções sobre o que seria típico do biológico - natureza - e o que seria típico do contrato - sociedade (atualmente denominada cultura), já se encontravam enunciadas desde o Iluminismo. Desta forma, a perspectiva filosófica ocidental reflete e bebe nesta construção que divide o conhecimento do homem quanto à natureza e cultura.

De acordo com Clastres (s/d), foi no século XVIII que se considerou a humanidade como uma espécie, sendo esta dotada de uma unidade natural. E foi desta teoria científica do homem – (as idéias acerca do homem começaram a desvencilhar da religião) – sobre um estado de natureza que no século XIX pensou-se em estágios evolutivos, pois se faz parte da natureza o homem também evolui. E como a autora acima afirma: da análise física/biológica referente aos diversos grupos humanos, os discursos evolutivos e com base nos conceitos naturais dos caracteres passaram para os traços morais e intelectuais.

Se as idéias provêm das sensações, se as sensações e as idéias se combinam segundo um pequeno número de leis numa ordem de complexidade crescente, então basta descobrir as causas das diferenças físicas (o primeiro e o mais simples dos dados, segundo as regras do método) para que todo o resto se explique (CLASTRES, pp. 192).

Sabe-se que ainda no século XX e XXI desenvolvem-se debates quanto ao que é natural, ligado a questões hormonais e genéticas, e o que é relativo ao social referente às ações humanas. Isso se deve ao fato que a dicotomia – natureza x cultura – é a base do pensamento ocidental. Contudo, deve-se ressaltar que este pensamento tem por fundamento uma aporia, pois aquilo que denominamos natureza advém de uma percepção sobre o real, sendo esta uma construção feita pelo intelecto que é calcada na cultura, ou seja, não há como considerar a natureza fora do âmbito da cultura.

Esse pensamento dualista que envolve a diferença entre natureza e cultura é uma das grandes bases do pensamento antropológico que sempre destacou a idéia da diferença e da diversidade humana. O choque de pensamento que acontece, muitas vezes, entre a antropologia e as ciências médicas e as naturais se dá pelo fato que a abordagem da primeira é sempre interdisciplinar, portanto, esta não pode descartar as considerações das outras ciências. Existe sim, um embate da antropologia com a biologia, mas o humano precisa ser compreendido em sua complexidade biológica, psicológica e cultural.

Para enfrentar este dilema das análises dos fenômenos que entendia de forma compartimentada o que era da ordem psicológica, ou da ordem biológica ou da ordem social veio o pensamento racionalista francês, mais especificamente com os pressupostos de Marcel Mauss. Este acreditava que os estudos dos comportamentos sociais não deviam ser separados em categorias isoladas, pois os fenômenos sociais são marcados por manifestações não-espontâneas (o que o levou a não desconsiderar os conceitos da psicologia, biologia, etc.) e orientadas, também, pelas formas coercitivas do grupo, ou melhor, da coletividade.

(...) toda uma série de expressões orais de sentimentos não são fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas sim fenômenos sociais, marcados por manifestações não-espontâneas e da mais perfeita obrigação. (MAUSS, apud CARDOSO DE OLIVEIRA, 1979, pp. 22).

O racionalismo francês, por meio de Marcel Mauss tentava, portanto, retirar da lógica ocidental os pares de oposição como indivíduo/sociedade, assim como natureza/cultura. Essas categorias de oposição que os indivíduos construíram como um esquema de percepção de nada ajudam a compreender o humano em sua totalidade.

(...) O princípio e o fim da sociologia é perceber o grupo inteiro e seu comportamento inteiro. (...) Os fatos que estudamos são todos, permitam-nos a expressão, fatos sociais totais, isto é, eles põem em ação, em certos casos, a totalidade da sociedade e de suas instituições. (...) Todos esses fenômenos são ao mesmo tempo jurídicos, econômicos, religiosos, e mesmo estéticos e morfológicos etc. (MAUSS,2003, pp. 309 e 312).

O que o gênero tem a ver com isso?

Trata-se de nada menos que de vos explicar como uma das categorias do espírito humano – uma dessas idéias que acreditamos inatas – lentamente surgiu e cresceu ao longo dos séculos e através de numerosas vicissitudes, de tal modo que ela ainda é, mesmo hoje, flutuante, delicada, preciosa, e passível de maior elaboração. É a idéia de “pessoa”, a idéia do “Eu” (MAUSS, 2003, pp. 369).

Dentro desta discussão que explora a dualidade entre natureza e cultura no pensamento ocidental está o debate acerca de gênero. As diferenças entre homem e mulher e as suas relações no princípio (e talvez ainda se possa dizer na atualidade) foram tomadas sob o viés do biológico, do natural.

O discurso sobre gênero teve seu princípio nos debates que se referiam à sexualidade. Nas ciências sociais o estudo desta temática é recente – final do século XIX – anteriormente este era reservado às ciências naturais e médicas. Estas últimas pensavam a sexualidade sob o enfoque daquilo que consideravam como “bom funcionamento” do corpo, ou seja, o que era colocado como funcionamento universal dos corpos biológicos.

Conforme Ingold (1955), esse tipo de pensamento pode ser comparado ao que os universalistas tinham como orientação para tentar compreender a diversidade humana. Os universalistas tentaram compreender o humano pelo que lhe é comum, o que tais consideravam a animalidade, este era o fator definidor da qualidade humana.

O essencialismo foi a primeira maneira de pensar a sexualidade. O impulso sexual, a importância da sexualidade na vida humana, o status universalmente privado do comportamento sexual ou sua natureza reprodutiva eram categorias naturalizadas e este status biologizante era pouco questionado.

Por exemplo, podemos citar Morgan (1974) que ao tratar sobre a concepção de família, coloca-se como necessário ao progresso humano o controle diante à sexualidade. Quer se dizer que, para Morgan, a sociedade precisou abandonar a promiscuidade (o desconhecimento do matrimônio) que estava atrelada a “selvageria”, logo, relacionada a apetites e paixões animalescas e culminar na sua forma “mais desenvolvida” a família monogâmica.

De acordo com Szasz[1] (2004) as ciências médicas, assim como as biológicas, olhavam a sexualidade humana como vinculada a um instinto animal reduzido às necessidades biológicas, como a reprodução das espécies. Todas as questões que envolviam a sexualidade estavam, por fim, ligadas à natureza, portanto, precisavam ser controladas para que se vinculasse ao âmbito cultural.

Para este enfoque, a sexualidade era entendida como uma força natural poderosa que existe em oposição à civilização, a cultura ou a sociedade e que requer um controle social. Esta força poderosa está situada nos indivíduos e são suas condutas individuais as que são centralmente o objeto de investigação. As sociedades e as culturas respondem a necessidade de controlar estes impulsos, em lugar de construí-los. O indivíduo e o impulso são, neste sentido, anterior a ordem social (tradução minha, SZASZ, 2004, pp. 65).

Para Foucault[2] (1985), esse controle sobre a sexualidade tem o caráter de continuar produzindo a idéia de que existem formas “naturais” de se ter o entendimento dos corpos.

O discurso da sexualidade não se aplicou inicialmente ao sexo, mas ao corpo, aos órgãos sexuais, aos prazeres, às relações de aliança, às relações inter-individuais, etc... (pp. 259).

Foi a partir do movimento feminista que se revolucionou a idéia do que é relativo ao sexo. Os esforços feministas concentraram-se em reexaminar as idéias sobre os corpos e suas relações levando a uma crítica geral do determinismo biológico, em particular do conhecimento baseado na biologia das diferenças sexuais.

Um dos pressupostos fundamentais deste movimento foi tentar retirar do imaginário à idéia que a mulher é vinculada à natureza e que, portanto, precisa ser domada, protegida, etc.. Ao se identificar a natureza ao sexo feminino, constroem-se argumentos para a regulação e domesticação do seu corpo, já que a natureza é ligada ao caos e é necessária a intervenção da cultura, concebida na lógica do dualismo/binarismo como masculina que repreende essa natureza desordenada.

Durante muito tempo se tentou fixar as mulheres à sua sexualidade. “Vocês são apenas o seu sexo”, dizia-se a elas há séculos. E este sexo, acrescentaram os médicos, é frágil, quase sempre doente e sempre indutor de doença. “Vocês são a doença do homem”. E este movimento muito antigo se acelerou no século XVIII, chegando a patologização da mulher: o corpo da mulher torna-se objeto médico por excelência (FOUCAULT, 1985 pp. 234).

O paradigma atual referente à sexualidade entende que se deve fazer uma fusão entre sexo e gênero. De acordo com Vance[3] (1995), a sexualidade, os arranjos de gênero, a masculinidade e a feminilidade são categoriais conectadas, até mesmo intercambiáveis. O gênero e a sexualidade estão inextricavelmente unidos.

Conforme os estudos de Foucault, Rich, Rubin, Wittig, Butler, Scott, Heilborn, Petchesky[4], entre outras e outros, é um erro considerar que o sexo é vinculado ao natural, ao instintivo e o gênero à cultura.

Tendo como base os argumentos de Butler, a categoria sexo assim como a categoria gênero são todas discursivas e ligadas a esfera da cultura. O sexo, portanto, não é uma substância, ou algo entranhado nos genes humanos, ele é uma construção e esta construção é relacional, ou seja, só existe o sexo feminino porque há o estabelecimento de diferenças com o sexo masculino. A identidade que é vinculada ao sexo feminino existe devido a sua referência ao sexo masculino.

Ressaltando as idéias de Rubin e Wittig, o sexo nunca é algo da natureza que depois é transformado em cultura, o sexo sempre é político, faz parte da cultura, é um discurso, uma linguagem. E como discurso é a própria percepção do real, exercendo, portanto, um poder bem definido sobre todas as pessoas.

As culturas moldam as personalidades

Estudei essa questão nos plácidos montanheses Arapesh, nos ferozes canibais Mundugumor e nos elegantes caçadores Tchambuli. Cada uma dessas tribos dispunha, como toda sociedade humana, do ponto de diferença de sexo para empregar como tema na trama da vida social, que cada um desses três povos desenvolveu de forma diferente. Comparando o modo como dramatizaram a diferença de sexo, é possível perceber melhor que elementos são construções sociais, originalmente irrelevantes aos fatos biológicos do gênero de sexo (MEAD, 2000, pp. 22).

A antropologia nos Estados Unidos discute os problemas das abordagens feitas por autores como Morgan, Frazer, Tylor, ou seja, aqueles considerados como evolucionistas. O novo estilo de se fazer antropologia baseado nos pressupostos de Boas e disseminado a seus alunos tinha como preocupação a descrição minuciosa de uma sociedade, em que se constatavam as particularidades sem considerá-las hierarquicamente superiores a outras particularidades de outros povos.

As teorias evolucionistas estavam sendo reviradas pelo paradigma que as culturas moldavam as personalidades. Ao contrário das idéias dos pensadores do século XVIII e XIX, que tratavam os fenômenos sociais como ainda presos a conceitos ligados a instintos e à evolução das espécies, a escola antropológica boasiana estudava a diversidade humana tendo a preocupação de observar as culturas com profundidade sem perder de vista as particularidades dos grupos, ou seja, estava-se criando o foco “relativista”.

Os relativistas negaram veemente as abordagens essencialistas que admitiam as culturas como entidades fixas determinadas pela biologia e pela natureza. Na verdade, para Boas e seus alunos era a cultura o fator determinante dos comportamentos sociais e é esta que modela a sociedade por meio de gestos, discursos, modelos que acompanham os seres humanos desde os primeiros dias do nascimento – há quem acredite que até mesmo antes do nascimento – e vai incorporando inconscientemente regras, padrões, proibições que influenciam a personalidade.

Por meio da perspectiva do relativismo cultural, podemos citar a obra de uma das alunas de Boas – Margaret Mead. Esta antropóloga em suas pesquisas estava atenta para o respeito à diferença e fazia questionamentos relevantes sobre a idéia ainda vigente de “superioridade” de alguns povos sobre outros. Por exemplo, em sua obra “Sexo e Temperamento” Mead coloca em xeque os padrões da sociedade estadunidense quanto à questão da sexualidade.

De acordo com Mead (2000), não há padrões ou aptidões inatas que definem o que é da ordem do masculino e da ordem do feminino. Portanto, é totalmente arbitrário dizer que é ideal a mulher conservar-se na passividade, no casamento e constituição do lar e o homem identificar-se com a agressividade, à caçada e aos jogos de beisebol.

(...) Admitir que homens e mulheres possam moldar-se a um padrão particular tão facilmente como a um outro e cessar de fazer qualquer distinção na personalidade aprovada de ambos os sexos. As meninas podem ser educadas exatamente como o são os meninos, aprendendo as mesmas regras, as mesmas formas de expressar, as mesmas ocupações. Esse caminho pode parecer a lógica resultante da convicção de que as potencialidades rotuladas por diferentes sociedades tanto masculinas como femininas são, na realidade, potencialidades de alguns membros de cada sexo, e de maneira nenhuma ligada ao sexo (idem, pp. 295-296).

Em sua obra Sexo e Temperamento Margaret Mead considera, então, que o temperamento molda e influencia o comportamento. Assim sendo, as práticas comportamentais são definidas pelo temperamento, que é uma das maneiras de moldagem da cultura.

As pesquisas de Margaret Mead serviram de alicerce para os estudos futuros de gênero. Em seu trabalho de campo entre os Arapesh, os Mundugumor e Tchambuli constatou-se que a sociedade vai dizer que há especificações em cada cultura de um ideal ou uma forma natural de ser homem e de ser mulher.

Nossa própria sociedade usa muito essa trama. Atribui papéis diferentes aos dois sexos, cerca-os desde o nascimento com uma expectativa de comportamento diferente, representa o drama completo do namoro, casamento e paternidade conforme os tipos de comportamento aceitos como inatos e, portanto, apropriados a um ou a outro sexo. (...) O reconhecimento de que a trama cultural por trás das relações humanas é o modo como os papéis dos dois sexos são concebidos e de que o menino em crescimento é formado para uma ênfase local e especial tão inexoravelmente como o é a menina em crescimento (idem, pp. 22- 23).

Enfim, para Mead a cultura é o meio em que se constrói a subjetividade tanto de homens quanto de mulheres. Portanto, nos seus estudos houve o avanço quanto à desnaturalização do sexo. Se há um substrato natural entre homens e mulheres a cultura sobrepõe essa base biológica.

Mais que células e tecidos, o corpo como construção

Mauss (2003) tenta fundamentar a idéia que o corpo é uma construção social dentro de cada sociedade, tentando explicar os motivos responsáveis pelas maneiras diversificadas em que se constitui esse corpo.

A forma de andar, de sentar, de olhar, de gesticular, de falar, de até mesmo “fazer amor”, enfim todas as ações que envolvem o uso de qualquer parte do corpo não estão implícitas na nossa morfologia. O conjunto de nossas atitudes é resultante de uma construção social, ou seja, o social opera no âmbito mais íntimo do indivíduo, o locus concreto do ser: o seu corpo.

Desta forma, assim como Mead acreditava que as formas em que se educava o comportamento de homens e mulheres não eram feita de forma neutra, Mauss (2003) também indicava que a forma como o corpo é utilizado também não é neutro, ou seja, o uso do corpo é um instrumento de tradução das relações sociais presentes em determinada organização social. Ora, “para saber por que ele não faz determinado gesto e faz outro, não bastam nem fisiologia nem psicologia da dissimetria motora no homem, é preciso conhecer as tradições que impõem isso” (idem, pp. 411).

Sendo a constituição do sujeito um processo inteiramente social, a sociedade impõe ao corpo do indivíduo um determinado modo de ser. E esse tipo de imposição é diverso, pois as sociedades possuem estruturas organizacionais diversas. Por meio da análise desta diversidade, concebe-se a impossibilidade de avaliar uma cultura pela outra, ou seja, de tirar padrões de cultura. Segundo Mauss, não existe uma forma específica de uso do corpo que possa servir como modelo “correto”, pois todo fenômeno social, um símbolo, uma palavra, um instrumento ou, até mesmo, um gesto é algo arbitrário, já que todos os fenômenos sociais são em certo grau, obra da vontade coletiva, e quem diz vontade humana, diz escolha entre diferentes opções possíveis (idem, pp. 421).

Há, portanto, técnicas corporais, isto significa dizer que existem formas diferentes de usos do corpo como resultado das relações, que também são diversas, existentes entre a sociedade e o indivíduo. Em resumo, o corpo é uma máquina que funciona segundo leis sociais, logo, seu uso controlado possui uma relação estreita com a sociedade.

Em exemplo Mauss ressalta que:

Há posições da mão, em repouso, convenientes ou inconvenientes. Assim, podeis adivinhar com certeza, se uma criança conserva a mesa os cotovelos junto ao corpo e, quando não come, as mãos sobre os joelhos, que ela é inglesa. Uma criança francesa não se comporta mais assim: abre os cotovelos em leque e os apóia sobre a mesa, e assim por diante (pp. 404).

E depois de tantos argumentos que tratam da singularidade do corpo humano, Mauss, finalmente, distingue o homem do animal:

Não há técnica e não há transmissão se não houver tradição. Eis em quê o homem se distingue antes de tudo dos animais: pela transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral (pp. 407).

E assim, talvez, Mauss não rompe completamente o conceito binário que separa o que é relativo ao animal e o que é relativo ao homem. Há, então, dentro do pensamento maussiano a necessidade de distinguir os mundos, ou aquilo que se refere à natureza e aquilo que se refere à cultura, mesmo que este demonstre em seus argumentos que não se pode fazer compartimentações disciplinares e temáticas.

Por fim, como neste artigo, faço relações entre corpo e gênero, quero trazer as abordagens de Mauss sobre estas relações. Em seu artigo sobre as Técnicas Corporais, Mauss afirma que há instruções distintas para o corpo de homens e o corpo das mulheres. Assim, o que se coloca como “natural” ao sexo é também algo arbitrário, faz parte do que ele considera como “adestramento humano”. “Talvez se trate aqui de duas instruções. Pois há uma sociedade dos homens e uma sociedade das mulheres” (pp. 409).

O grande momento da educação do corpo é, de fato, o da iniciação. Imaginamos, em virtude da maneira como nossos filhos e filhas são educados, que tanto uns quanto as outras adquirem as mesmas maneiras e posturas, recebendo o mesmo treinamento em toda parte. (...) As mulheres seguem as escolas de suas mães e nelas se formam constantemente, para passar, salvo exceções, diretamente ao estado de esposas. Já o rapaz ingressa na sociedade dos homens, onde aprendeu seu ofício e, sobretudo seu ofício militar (pp. 414).

Considerações Finais

A humanidade e suas peculiaridades, de acordo com Ingold (1955), é o tema peculiar da antropologia. Neste artigo, as diferenças de análise ao longo dos anos pela abordagem antropológica das categorias: sexualidade e corpo mostraram um pouco da própria história desta ciência. Ora, estas categorias passaram de um entendimento da ordem religiosa para uma perspectiva de pensar o homem como um ser unilateral e fisiologicamente mutilado (século XVIII e XIX) para que no século XX houvesse um refinamento conceitual que tomasse na íntegra esse sujeito.

O refinamento conceitual aqui considerado foi baseado nos pressupostos de Margaret Mead e Marcel Mauss, contudo estes pensadores não trataram esse sujeito de maneira igual. A diferença está em inferir que Mead considerava que a cultura comandava o desenvolvimento psíquico e biológico, ou seja, um indício de sobreposição de categorias de análise. Entretanto, Mauss, em suas constatações, faz o uso da aproximação da etnologia (antropologia e sociologia) com a psicanálise, assim como da morfologia.

O estudo das técnicas do corpo, realizado por Mauss, a partir da compreensão que o homem deve ser compreendido em sua totalidade[5] justifica-se, a partir da observação deste teórico, pelo fato que as explicações deveriam romper com a compartimentação dos campos de conhecimento. Contudo, vimos que em alguns momentos há certas divisões e reforços aos binarismos.

Pautando-se nessas reflexões, constata-se que as diferenças que existem entre as formas pelas quais o corpo é pensado assim como o sexo/gênero é definido em diferentes sociedades, resultam das interpretações específicas e possíveis sobre as organizações da vida do homem em coletividade.

Referências Bibliográficas

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CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Mauss. Coleção Grandes Cientistas Sociais; n. 11. São Paulo: Ática, 1979

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________________. El pensamiento heterosexual y otros ensayos. Madrid: EGALES, 2006.



[1] SZASZ, Ivonne – autora trabalhada na disciplina Gênero e Sexualidade.

[2] Foucault, Michel – autor trabalhado na disciplina Gênero e Sexualidade.

[3] Vance, Carole – autora trabalhada na disciplina Gênero e Sexualidade.

[4] Todas estas autoras e autores citados neste parágrafo foram trabalhadas na disciplina Gênero e Sexualidade.

[5] Essa totalidade é trabalhada por Mauss em suas abordagens metodológicas que busca compreender a sociedade como um conjunto de sistemas: o religioso, o jurídico, o econômico, etc. Logo, para este autor é impossível compreender o fenômeno social, inserido no inteiro desses sistemas, sem levar em consideração a totalidade e, sobretudo, sem ter em conta o fato dominante de que eles formam um sistema.

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